ALUCINAÇÃO
Trago os olhos inundados de poeira.
Vejo tudo na sombra que me vive
e a própria noite é uma cegueira
a fechar ilusões que nunca tive.
Desenham-se contornos imprecisos
nos auges limitados do meu ser.
E fico mudo, a ostentar sorrisos
que nem eu mesmo sei compreender.
Toda a paisagem é fechada e nua
como o tronco lavado dum arbusto,
onde os esguios caracóis da lua
tecem meadas de susto.
Perturba-me a penumbra como um cio.
Quero lançar a minha angústia aos ventos,
e o meu desejo alçado é como um frio
aborto de irreais lamentos.
Sinto-me aflito com a dúbia luz
que irrompe da fundura dos pinhais.
Estalam ecos. E o pavor conduz
meu corpo a regiões sinistras, outonais.
Cavam-se abismos fundos a meus pés
e eu fico a olhá-los, espantado e quedo.
Rebentam violências de marés
à minha volta, a transportar o medo.
Noite opressiva, esta que me fita.
(E a minha angústia é cada vez maior.)
Mas, de repente, como quem medita
e se rebela contra a sua dor,
lanço, obstinado, mãos à tatuagem
que me tapa os olhos delirantes
e vejo-me sentado a beber a aragem
que o dia traz nos braços madrugantes.
In “Vocação do Silêncio”
Biblioteca de Autores Portugueses,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
Lisboa, 1990
Albano Martins
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