A CAROLINA
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.
[Relíquias de Casa Velha]
In “Toda Poesia de Machado de Assis”
Machado de Assis
(1839-1908)
NATAL
Jesus nasceu! Na abóbada infinita
Soam cânticos vivos de alegria;
E toda a vida universal palpita
Dentro daquela pobre estrebaria...
Não houve sedas, nem cetins, nem rendas
No berço humilde em que nasceu Jesus...
Mas os pobres trouxeram oferendas
Para quem tinha de morrer na Cruz.
Sobre a palha, risonho, e iluminado
Pelo luar dos olhos de Maria,
Vede o Menino-Deus, que está cercado
Dos animais da pobre estrebaria.
Não nasceu entre pompas reluzentes;
Na humildade e na paz deste lugar,
Assim que abriu os olhos inocentes,
Foi para os pobres seu primeiro olhar.
No entanto, os reis da terra, pecadores,
Seguindo a estrela que ao presepe os guia,
Vêm cobrir de perfumes e de flores
O chão daquela pobre estrebaria.
Sobem hinos de amor ao céu profundo;
Homens, Jesus nasceu! Natal! Natal!
Sobre esta palha está quem salva o mundo,
Quem ama os fracos, quem perdoa o Mal!
Natal! Natal! Em toda Natureza
Há sorrisos e cantos, neste dia...
Salve, Deus da Humildade e da Pobreza,
Nascido numa pobre estrebaria!
In “Olavo Bilac - Obra Reunida”
Olavo Bilac
(1865-1918)
O HOMEM QUE LÊ
Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.
E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.
[Tradução de Maria João Costa Pereira]
In "O Livro das Imagens"
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
O CÁRCERE DO EGOÍSMO
Um homem ontem vi, que estava preso
Numa prisão estranha.
– «Quem te prendeu?» - lhe perguntei surpreso.
– «Ninguém. Sou livre» E, numa rude sanha,
arrogante retruca: - «É puro engano!
O preso não sou eu. Tu é que vais,
às mãos do vil tirano,
preso e bem preso,
para sempre jamais»…
A todo o homem agrilhoa o jugo
do egoísmo.
Mas – forte vezo,
incônscio servilismo! –
a garra adunca
dum tal verdugo
nos outros vemo-la. E em nós mesmo? – Nunca.
In “Do Homem e da Terra” – Poemas – 1932
Edições “Brotéria” – Lisboa
Serafim Leite
(1880-1969)
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