OS CEGOS
Não vemos o mostrador do Tempo
Assim como não vemos
Uma forma de vida fundir-se noutra.
Não vemos a vida caminhar sobre nossa origem
Construindo muralhas contra nós mesmos.
Não ouvimos o cântico de guerra
Festejando nossos fracassos
Registrados nas páginas do pensamento.
A cada hora vemos e sentimos menos
O mostrador do Tempo.
Somos mutações desordenadas
Multiplicando-se nos porões fétidos
De galeras negras, abandonadas.
In “Erosão” - 1973
Adalgisa Nery
(1905-1980)
Brasil
SJ-01
enquanto dormias coloquei o teu corpo sobre o mar
e atravessei o quarto e um pequeno-almoço de laranjas junto à janela
e de jornais pelo chão
pelo corredor
enquanto o teu corpo continuava a boiar
sobre a cama.
os órgãos
mantêm o corpo na linha espelhada da superfície
no equilíbrio entre os pulmões que querem regressar ao ar de
que são feitos e o coração
que é de água e quer mergulhar
arrastando tudo para as profundezas do mar e da consciência.
enquanto dormias despenharam-se
três cometas sobre o estábulo do rio
revolvendo as águas
(talvez fosse eu que boiasse e tu que me
observasses do cimo das águas e através da linha de mercúrio).
e resolvi partir
para fundar outra cidade.
uma intuitiva lei de equivalências transporta-me
do ondular do teu peito para a respiração do mar
no teu corpo adormecido.
onde o nosso filho, que é ainda apenas
um plano feito ao jantar
com os pratos já vazios e os talheres faiscando prata entre restos de comida
cresce erguendo abóbadas sobre o lago em que se banha
dormindo no equilíbrio das águas.
são os teus pulmões que nos têm mantido à tona,
na superfície do espelho que
não pertence a nenhum dos mundos a que serve de barreira
de refúgio.
enquanto dormias regressei
para te ver dormir.
In “Fórmulas”
Quasi Edições - 2004
Tiago Araújo
(N. 1973)
OPINIÃO SOBRE A PORNOGRAFIA
Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
Num canteiro demarcado para margaridas.
Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
A dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
A perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
O tatear indecente dos temas delicados,
A desova das ideias - é disso que eles gostam.
À luz do dia ou na escuridão da noite
Se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.
Preferem o sabor de outros frutos
Da árvore proibida do conhecimento
Do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
Toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
Marcadas com a unha ou com lápis.
É chocante em que posições
Com que escandalosa simplicidade
Um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece.
Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
O outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
Se aproxima da janela
E pela fresta da cortina
Espia a rua.
In “Poemas”
Selecção, tradução e prefácio Regina Przybycien
Companhia das Letras
Nobel de Literatura de 1996
Wislawa Szymborska
(1923-2012)
Polónia
TRISTES CANTIGAS DE AMOR
Meus olhos que por alguém
Deram lágrimas sem fim,
Já não choram por ninguém
– Basta que chorem por mim.
Arrependidos e olhando
A vida como ela é,
Meus olhos vão conquistando
Mais fadiga e menos fé.
Sempre cheios de amargura!
Mas se as coisas são assim,
Chorar alguém – que loucura!
– Basta que eu chore por mim.
Cantiga 1
As Canções de António Botto
Ed. Presença – Lisboa – 1980
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
António Botto
(1897-1959)
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