AH A FRESCURA NA FACE DE NÃO CUMPRIR UM DEVER!
Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte...
Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
17/6/1929
In “Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa
Fernando Pessoa – Poesia de Álvaro Campos – Vol. I”
Assírio & Alvim e Herdeiros de Fernando Pessoa
(edição de Teresa Rita Lopes), Lisboa, 2002
Da presente edição:
Editora Planeta DeAgostini, S.A. – Lisboa
Colecção dirigida por Vasco Graça Moura
Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
UM BEIJO
Um beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
In “Inéditos e Dispersos”
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Brasil
A CRIANÇA QUE PENSA EM FADAS E ACREDITA NAS FADAS
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
Poemas Inconjuntos
In “Poesia”
Ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith
Assírio & Alvim - 2001
Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
A ESPERA
Amado... Por que tardas tanto?
As primeiras sombras se avizinham
E as estrelas iniciam a noite.
Vem...
Pois a esperança que se acolheu em meu coração
Vai deixá-lo como um ninho abandonado nos penhascos.
Vem... Amado...
desce a tua boca sobre a minha boca
Para a tua alma levar a minha alma
Pesada de sofrimento!
Vem...
Para que, beijando a minha boca
Eu receba a sensação de uma janela aberta.
Amado meu...
Por que tardas tanto?
Vem...
E serás como um ramo de rosas brancas
Pousando no túmulo da minha vida...
Vem amado meu.
Por que tardas tanto?
In “As fronteiras da quarta dimensão: poesias” - 1952
Adalgisa Nery
(1905-1980)
Brasil
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