AS SEM-RAZÕES DO AMOR
Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
In “O Corpo”
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Brasil
ÁGUA SEXUAL
Rodando calhas solitárias,
há gotas como dentes,
há espessas goteiras de marmelada e sangue,
rodando a calha,
cai a água,
como uma espada em gotas,
como um desgarrado rio de vidro,
cai mordendo,
golpeando o eixo da simetria, pegando nas costuras
da alma,
rompendo coisas abandonadas, empapando o obscuro.
Somente é um sopro, mais húmido que o choro,
um líquido, um suor, um óleo sem nome,
um movimento agudo,
fazendo-se, espessando-se,
cai a água,
a gotejadas lentas,
em direcção ao seu mar, ao seu seco oceano,
à sua onda sem água.
Vejo o verão extenso, e um estertor saindo de um celeiro,
bares, cigarras,
populações, estímulos,
habitações, crianças dormem com as mãos no coração,
sonham com bandidos, com incêndios,
vejo barcos,
vejo árvores de medula
enraizados como gatos raivosos,
vejo sanje, punhais e meias de mulheres,
e pelos de homem,
vejo camas, vejo corredores onde grita uma virgem,
vejo lençóis e órgãos e hotéis.
Vejo os sonhos sigilosos,
admito os dias postergados,
e também as origens, e também as recordações,
como uma pálpebra atrosmente levantada a força
estou olhando.
E então há esse som:
um ruido vermelho de ossos,
um grudar-se de carne,
e pernas amarelas como espigas juntando-se.
Eu escuto entre o disparo dos beijos,
escuto, sacudindo entre respirações e soluções.
Estou vendo, ouvindo,
com a metade da alma no mar e a metade da alma
na terra,
e com as duas metades da alma olho o mundo.
E ainda que feche os olhos e me cubra o coração inteiramente,
vejo cair uma água surda,
a grossas gotas surdas.
É como um furação de gelatina,
como uma catarata de espermas e medusas.
Vejo correr um arco iris turvo.
Vejo passar suas águas através dos ossos.
In “Residencia en la Tierra 2”
Pablo Neruda
(1904-1973)
Chile
O SEGREDO É AMAR
O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.
Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.
O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.
Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.
Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!
In "Trinta e Nove Poemas"
Fernanda de Castro
(1900-1994)
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