ARTES FINAIS
O empregado da Funerária
bebia a sexta cerveja dominical
ao balcão. Estávamos, por
bizarro que pareça, na Rua do Paraíso
e lia-se na montra vizinha
do fornecedor de urnas
(24 horas por dia), pintada
em letras douradas, a palavra
armador. Reparti a minha atenção
entre essa palavra e a cerveja alheia.
Viajei com a família
verbal: pelas armadas marítimas,
por ítacas, bojadores e gamas,
por elmos de quixote, toucados, presépios
e outra literatura, mas não consegui
fugir à extinção visível
do nível da cerveja no fino do
funcionário.
In “Logros Consentidos”
Ed.& etc
Inês Lourenço
(N. 1942)
DESOLAÇÃO
A casa está vazia.
Ao cimo da escada apareces às vezes com as
cores do inverno,
e és um vulto,
o sétimo selo sobre a minha palidez.
Não falas, não te moves,
e no entanto a minha vida estremece,
assaltada pelas tuas máquinas profundas.
O pranto cresce nos campos ao abandono.
Os meus dedos fecham os olhos dos
guerreiros mortos.
Chove, chove sempre que os encontro nos
desfiladeiros do norte,
hirtos,
entregues à sua sorte,
como este lugar desabitado cujas lâmpadas
se apagaram,
esta casa vazia onde te deitas para sempre,
já tão longe das hortênsias.
In “Agora e na Hora da Nossa Morte”
Assírio & Alvim
José Agostinho Baptista
(N.1948)
COM PALAVRAS
Com palavras se fazem coisas
com elas se desfazem.
As palavras não decifram
são enigmas
matéria obscura
luminosa.
Com palavras se navega
com palavras se naufraga.
Com palavras.
In “Obra Poética”
Edições Dom Quixote.
Manuel Alegre
(N. 1936)
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
In “Matura Idade”
Editora Arcádia
David Mourão-Ferreira
(1927 – 1996)
AS POMBAS
Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais.
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam
E eles aos corações não voltam mais...
In "Poesias completas"
Organização, prefácio e notas de Múcio Leão
Ed. Nacional - São Paulo - 1948
Raimundo Correia
Poeta Brasileiro
(1859 – 1911)
QUERO-TE PARA ALÉM DAS COISAS JUSTAS
Quero-te para além das coisas justas
e dos dias cheios de grandeza.
A dor não tem significado quando me roubam as árvores,
as ágatas, as águas.
O meu sol vem de dentro do teu corpo,
a tua voz respira a minha voz.
De quem são os ídolos, as culpas, as vírgulas
dos beijos? Discuto esta noite
apenas o pudor de preferir-te
entre as coisas vivas.
In “Os Dias da Serpente”
Moraes Editores
Joaquim Pessoa
(N. 1948)
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