O VERÃO NÃO TINHA LIMITES
o Verão não tinha limites.
a mulher lidava com a casa pele com pele
andava todos os dias muito de noite
dias e dias de noite de roda dos fetos
toda dentro do Verão sem nenhum
tornozelo de fora.
era o Verão em hora de ponta
a mulher arrastava-se dentro da mulher.
os dias só faziam sentido existindo noites
as noites só faziam sentido trincando nêsperas
e bordando palavras que dessem sombra no ventre.
uma noite a mulher bordou a palavra mulher
e deitou-se de bruços.
era quase luz quando a primeira letra se ergueu.
e sem que houvesse tempo de escolher canção e vinho à altura
dessa primeira letra saiu o corpo
íngreme
arado
torrencial
do que havia de ser o anjo.
In “Marsupial” Lisboa:
Mariposa Azual - 2014
Catarina Nunes de Almeida
N.1982
COM PAIXÃO E HIPOCONDRIA
Confortamo-nos com histórias laterais,
evitamos o toque, há risco de contágio;
por mais que preservemos a franqueza
passou o estágio já da frontal alegria:
estamos bem, obrigada, embora aquém
de antes – entretanto admitimos não
saber, e enquanto resta isto indefinido,
mesmo com luvas, pinças de parafina,
não sondamos mais, sob pena de crescer
um quisto nesse incisivo sítio onde
achámos sem tacto que menos doía
In “Mulher ao Mar”
Mariposa Azual -2010
Margarida Vale de Gato
N. 1973
DESENCANTO
Teus olhos, cuja luz
Já me envolveu d'amor o coração
E doirou minha cruz
Do seu divino e mágico clarão...
Teus olhos, cuja graça
Já em risos passou por sobre mim,
Como pelo ermo passa
A Luz a desfolhar-se, - alvo jasmim...
Teus olhos, cujo pranto
Por mim já derramaste, quando ausente,
Cheia de dor e encanto,
Choravas de saudade, aflitamente...
Teus olhos, esses sóis
Que eu adorava como o persa adora
O sol entre arrebois...
- O meu Norte, o meu Dia, a minha Aurora!
Teus olhos... porque os vi
Fitando uns outros que não são os meus,
De todo os esqueci...
E assim manchaste tu esses dois céus!...
In “Obra Poética de Bernardo de Passos”
Edição da C. M.de S. Brás de Alportel - Novembro de 1982
Bernardo de Passos
1876 – 1930
CANÇÃO SEXTA
Tanto o pó de outro dia destruíra
o último sossego novamente
este cheiro de vida embora andasse
a tarde sobre tudo sem sossego
engano
escasso vento
o pó levando ainda de outro dia
Do abrigo do dia novamente
lançados sobre a áspera cratera
dos enganos lavrada do sossego
no uso dos enganos tão ciente
ar doce do amor que leva o pó
do abrigo do dia sobre tudo .
frágil disperso fora com o vento
lançados do engano do sossego
Somente já de vida mantivera
não da gruta da tarde as vãs lembranças
o pó do dia
as nuvens os enganos
desabridos da tarde enfim de vida
as crateras apenas despejadas
assim o pó ardia novamente
surdo cansado espesso pó da terra
Não trazia lembranças
sem sossego abrigava de outro dia
da tarde sossegada a escassa vida
De destroços canção somente a vida
não reduz do sossego destruído
de outro dia a lembrança ao pó que a traz
In “Poesia 1961-1981”
O Oiro do Dia
Gastão Cruz
N.1941
CLICHÉ
Descalça vai pela estrada
A formosa lavradeira,
Leva ao ombro uma aguilhada
E conduz os bois à feira.
O seu rosto oval, perfeito,
Lembra o de Nossa Senhora:
Falta-lho Menino ao peito...
S.José, quem o não fora?!
– Teus cabelos são de trevas!...
A enfeitar o penteado.
Muito escarlate... que levas?
– Uma papoila do prado.
Quadra-lho corpete bem
Sem renda nem entremeio,
Por feitio apenas tem
Dois balõezinhos no seio...
A saia se amolda às ancas
Com volúpia e tais maneiras
Que, se mostra as fraldas brancas,
Parecem duas peneiras...
Descalça vai pela estrada
Mai-los bois essa donzela
E conduz, com a aguilhada.
Os meus olhos atrás dela!
In “Luar e Sol” – 1961
Pap. Liz
Gentil de Valadares
1916 – 2006
MATER DOLOROSA
Quando se fez ao largo a nave escura,
na praia essa mulher ficou chorando,
no doloroso aspecto figurando
a lacrimosa estátua da amargura.
Dos céus a curva era tranquila e pura;
das gementes alcíones o bando
via-se ao longe, em círculos, voando
dos mares sobre a cérula planura.
Nas ondas se atufara o Sol radioso,
e a Lua sucedera, astro mavioso,
de alvor banhando os alcantis das fragas!...
E aquela pobre mãe, não dando conta
que o sol morrera, e que o luar desponta,
a vista embebe na amplidão das vagas...
In “Nocturnos”
Gonçalves Crespo
1846 – 1883
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