Sábado, 28 de Junho de 2014

Eu li... José Carlos Ary dos Santos

RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA

 

Da medonha saudade da medusa

que medeia entre nós e o passado

dessa palavra polvo da recusa

de um povo desgraçado.

 

Da palavra saudade a mais bonita

a mais prenha de pranto a mais novelo

da língua portuguesa fiz a fita

encarnada que ponho no cabelo.

 

Trança de trigo roxo Catarina

morrendo alpendurada

do alto de uma foice.

[Soror Saudade Viva assassinada

pelas balas do sol

na culatra da noite.

 

Meu amor. Minha espiga. Meu herói

Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher

de corpo inteiro como ninguém foi

de pedra e alma como ninguém quer.

 

In “Obra Poética”

Edições Avante

 

José Carlos Ary dos Santos

1937 – 1984

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Segunda-feira, 23 de Junho de 2014

Eu li... Vitorino Nemésio

A VIDA É TEMPO

 

Com alma, ideias, tempo, luta

Componho um homem, sou sujeito:

Penso-me livre numa gruta

Como pretérito imperfeito.

 

De era se faz o meu futuro,

Será será o meu passado

Como da era se faz o muro

Mais que da pedra levantado.

 

Se horas a nada levam tudo,

Nada nasceu, tudo é que é,

Haja ou não haja Sartre e o mudo

Deus Tudo-nada havido em fé.

 

Que ele é Deus mesmo no absoluto

Ser contestado, tão assente

Que se faz Deus na voz que escuto,

Mesmo que o negue, e me desmente

 

In “O Verbo e a Morte”

Moraes Editores - 1959

 

Vitorino Nemésio

1901 – 1978

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Quarta-feira, 18 de Junho de 2014

Eu li... Pero Meogo

TAL VAI O MEU AMIGO, CON AMOR QUE LH'EU DEI

 

-Tal vai o meu amigo, con amor que lh'eu dei,

 come cervo ferido de monteiro del-Rei.

 

 Tal vai o meu amigo, madre, con meu amor,

 come cervo ferido de monteiro maior.

 

 E, se el vai ferido, irá morrer al mar;

 si fará meu amigo, se eu del non pensar.

 

 -E guardade-vos, filha, ca ja m'eu atal vi

 que se fez mui coitado, por guaanhar de min.

 

 E guardade-vos filha, ca ja m'eu vi atal

 que se fez mui coitado, por de min guaanhar.

 

In “Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana” – Lisboa - 1878

 

Pero Meogo

(Viveu na segunda metade do século XII)

 

Mantém grafia original

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Sexta-feira, 13 de Junho de 2014

Eu li... Ana Paula Inácio

AMANHÃ VOU COMPRAR UMAS CALÇAS VERMELHAS

 

Amanhã vou comprar umas calças vermelhas

porque não tenho rigorosamente nada a perder:

contei, um a um, todos os degraus

sei quantas voltas dei à chave,

sublinhei as frases importantes,

aparei os cedros,

fechei em código toda a escrita.

 

Amanhã comprarei calças vermelhas

fixarei o calendário agrícola

afiarei as facas

ensaiarei um número

abrirei o livro na mesma página

descobrirei alguma pista.

 

In “Vago Pressentimento, Azul Por Cima”

Ilhas – 2000


Ana Paula Inácio

N. 1966

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Domingo, 8 de Junho de 2014

Eu li... Pedro Homem de Mello

REMORSO

 

Lembro o seu vulto, esguio como espectro,

Naquela esquina, pálido, encostado!

Era um rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado…

 

De mãos nos bolsos e de olhar distante

- Jeito de marinheiro ou de soldado…

Era um rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado.

 

Quem o visse, ao passar, talvez não desse

Pelo seu ar de príncipe, exilado

Na esquina, ali, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!

 

Perguntei-lhe quem era e ele me disse:

Sou do Monte, Senhor! e seu criado…

Pobre rapaz da camisola verde

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!

 

Porque me assaltam turvos pensamentos?

Na minha frente estava um condenado?

- Vai-te rapaz da camisola verde,

Negra madeixa ao vento

Boina maruja ao lado!

 

Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço.

Indiferente à raiva do meu brado.

E ali ficou, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado…

 

Ali ficou… E eu, cínico, deixei-o

Entregue à noite, aos homens, ao pecado…

Ali ficou, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado…

 

Soube eu, depois, ali, que se perdera

Esse que, eu só, pudera ter salvado!

Ai! do rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!

 

In “Miserere” – 1948

Editora Portugália

 

Pedro Homem de Mello

1904 – 1984

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Terça-feira, 3 de Junho de 2014

Eu li... Soares de Passos

O ANJO DA HUMANIDADE

 

Era na estância cristalina e pura,

Que além do firmamento rutilante

Se ergue longe de nós, e está segura

Em milhões de colunas de diamante;

Jerusalém celeste, onde fulgura

Do eterno dia o resplendor constante,

E onde reside a glória e majestade

D’Aquele que povoa a imensidade.

 

Na mansão mais recôndita e profunda

A soberana Essência o trono encerra,

Donde a fonte de amor brota fecunda,

Os astros animando, os céus e a terra;

Um mar de luz seus penetrais circunda,

Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,

Luz que em triângulo ardente se condensa

Quando o Eterno os oráculos dispensa.

 

Por toda a parte o azul e as pedrarias

Na cidade divina resplandecem;

Mil arcadas de sóis, mil galerias

De brilhantes estrelas a guarnecem;

Os anjos em lustrosas jerarquias

Nas harpas d’ouro melodias tecem,

Outros em coros adejando voam

E d’aromas e canto o céu povoam.

 

Eis de repente nos umbrais divinos,

Sobre as asas pairando, um anjo entrava,

Parecendo de sítios peregrinos

Que às regiões celestes assomava;

Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,

Qual rápido luzeiro perpassava,

Té que chegando ao trono do Increado,

Nos últimos degraus ficou pousado.

 

Pelos ebúrneos ombros o cabelo

Em aneladas ondas lhe caía;

A safira das asas sobre o gelo

Das roupagens reluzentes refulgia.

Mais brilhante não é, não é mais belo,

Comparado com ele, o astro do dia,

Ou a estrela que brilha quando a aurora

De purpurina luz o céu cobra.

 

Ao trono augusto levantou a frente,

Mas com as asas a toldou ansioso,

Não podendo suster o brilho ardente

Que despedia o foco luminoso.

 

A milícia dos anjos resplendente

Fixou atenta seu irmão formoso;

Os concertos pararam, e ele entanto

Assim falou entre o geral espanto:

 

«Eterno Ser, que as divinais moradas

«Enches de glória em majestoso assento,

«Fonte de vida e criações variadas,

«Que dás ao mundo poderoso alento;

«A cujo aceno tremem abaladas

«As colunas do etéreo firmamento,

«E cujo nome, que o universo entoa

«No céu, na terra, e nos abismos soa!

 

«Por teu mando supremo destinado,

«A conduzir a humana descendência,

«Desde que a mancha do cruel pecado

«A fez cair da primitiva essência:

«Venho afinal, Senhor, de teu mandado

«Dar-te conta fiel, após a ausência;

«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,

«E aguardar teus preceitos sacrossantos.

 

«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento

«Prosseguisse na terra a lei sob’rana

«Que rege, na amplidão do firmamento

«A criação que de teu seio emana:

«Essa lei do progresso e movimento

«Tenho cumprido na família humana,

«Desde que ao mundo, a combater seu fado,

«O desterrado do éden foi lançado.

 

«Primeiro, sobre a terra esclarecendo

«Seus duvidosos passos vacilantes;

«Depois, o justo e seu baixel sustento

«Nas águas do dilúvio sussurrantes:

«De novo à terra de pavor tremendo,

«Conduzindo mais puros habitantes:

«Mais tarde junto ao berço do Messias,

«Anunciando ao mundo novos dias.

«Agora, sobre as ruínas dum império

«Outro império de novo edificando;

 

«Agora, as povoações dum hemisfério

«Sobre as doutro hemisfério derramando:

«Já do teu Verbo o divinal mistério,

«Com as santas doutrinas propagando;

«Já mostrando por fim à humanidade

«Nova luz de justiça e de verdade.

 

«Quantos velhos sofismas desterrados!

«Quantos ídolos falsos em ruínas!

«Quantos sábios triunfos alcançados!

«Quantas conquistas imortais, divinas!

«Calcando o pó dos séculos passados,

«O homem corre ao fim que lhe destinas;

«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta

«Seu amor esmorece e desatenta.

 

«Seu valor esmorece! tantas lidas,

«Tanto lutar contínuo das idades,

«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,

«Tantas ruínas d’impérios e cidades:

«E o homem sofre, e as gerações perdidas

«Se revolvem num mar de tempestades,

«Sem ver luzir esse fanal jucundo

«Que por teu filho prometeste ao mundo.

 

«Quantos males ainda! a lei sublime,

«A lei d’amor que derramou teu Verbo,

«Sobre a face da terra, à voz do crime,

«Sucumbe e morre por destino acerbo.

«O férreo jugo que as nações oprime,

«Os humildes abate, ergue o soberbo,

«E o rei da terra, sobre a terra escravo,

«Sofre mesquinho seu eterno agravo.

 

«Por toda a parte, em lastimoso acento,

«Se ouve gemer a humanidade aflita.

«A terra, a mãe comum, nega alimento

«Dos filhos seus a à multidão proscrita:

«Enquanto folga em vícios o opulento,

«A indigência cruel na choça habita,

«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,

«Aperta morto à fome o seu filhinho.

 

«Entanto a guerra, que a ambição ateia,

«Ensanguenta as campinas e as cidades;

«A crua peste, que ninguém refreia,

«Converte as povoações em soledades;

«Destes males cruéis a terra cheia,

«Cobre-se inda de mil iniquidades;

«O vício, o crime, a corrupção devora

«A pobre humanidade, como outrora.

 

«Ao ver tanta miséria, o bom padece,

«O mau blasfema de teu nome santo,

«A voz dos inspirados esmorece,

«O futuro se envolve em negro manto...

«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece

«Que a humanidade te dirige em pranto,

«Subi confuso ao eternal assento,

«A depor a teus pés meu desalento.»

 

Disse, e um gemido d’aflição pungente,

Semelhante a dulcíssona harmonia,

Soltou do peito, reclinando a frente

Com celeste e ideal melancolia:

Assim pendendo ao longe no ocidente,

Se reclina saudoso o astro do dia;

Assim reclina a pálida açucena,

Açoutada do vento, a fronte amena.

 

Depois, continuando: «O Deus, quem há-de

«Sondar mistérios que teu seio esconde?

«Tuas leis divinais, tua vontade

«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:

«Os passos da mesquinha humanidade

«Aonde os levarei, Senhor, aonde?»

Uma voz retumbou do céu radiante.

Que ao anjo respondeu, dizendo: — AVANTE!

 

In “POESIAS” – 1858 – 1ª ed. 1856

 

Soares de Passos

1826 – 1860

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