OS AMANTES
Encheram profunda taça e envolveram-se em fervor.
Ficou-lhes na boca — presa ao crescente desejo
de mais beberem, de mais conhecerem — o sabor
da outra Vida maior, onde os levara o ensejo
de ultrapassarem a carne. Em solidão limitados,
num barco sem dia a dia, compromissos ou tratados,
singram velozes sem tempo, definidos pela estrela
que lhes indica, serena e nitidamente, o norte.
Encheram de novo a taça; incha mais a panda vela.
E para serem iguais, apenas lhes falta a Morte!
In "Difícil Passagem"
Edição do Autor (?)
António Salvado
N. 1936
DO PASTOR QUE SIRVO
Do pastor que sirvo,
É tal o jornal.
Que trigo lhe peço,
Centeio me traz.
Bem haja a Clemência,
Que é tão liberal,
Que se um pão lhe peço,
A um Deus me dá.
Amo uma pastora
Tão desnatural,
Que rosas lhe peço,
E espinhos me dá
Bem haja a Clemência,
Que é tão liberal,
Que flores lhe peço,
E amores me dá.
Guardo umas ovelhas,
E é o gado tal,
Que venho em tosquia,
Quando vou por lã.
Bem haja a Clemência,
Que é tão liberal,
Que xerga lhe peço,
E ouro me dá.
Um enxame tenho,
E as abelhas tais,
Que lhe peço mel,
E trago azibar.
Bem haja a Clemência,
Que é tão liberal,
Que açúcar lhe peço,
E néctar me dá.
Cultivo uma vinha,
De tal natural,
Que e Setembro estamos,
E em agraço está.
Bem haja a Clemência,
Que é tão liberal,
Que vinho lhe peço,
E adega me dá.
In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”
Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria
Editora Terramar
Soror Maria do Céu
1658 – 1753
OLHOS COR DE CHICOTE
Fiz uma casa com traves funestas
e a casa estava toda em fogo.
À hora da tarde quando o canto dos melros
e dos tentilhões começa a enlouquecer.
Por vezes a chama fugia da casa
à espera de viragem que não vinha.
A distância naufraga em soro branco,
o arbusto recolhe na falésia a profecia,
na carcuma onde a poalha não tem fim.
Torna-se ainda mais convulso
o remorso que tomba, ouvia-se
cada um dos soluços, pisados
por todos os que passavam.
Um nome ganha temor, a penumbra, o cipreste,
a crepitação das coisas que dizimam.
Um jorro negro é a sua frente.
E tu dizes-me: vais deixar
de ouvir as ondas, o verão não voltará,
podes esquecer e ser feliz.
Mas já é tarde. Não valia a pena
cada lágrima, a casa calcinada,
o bosque ao abandono, a geada no bebedouro,
o regresso de mais um sonho.
Em todos eles se liquefazem as árvores,
o torreão afogado do caminho, o curral,
o saque da fruta por larvas de uma grade.
E continua a arder no quarto
que rebenta.
Tudo se acumula na representação.
Assim um sismo
retira cidades do que foi cidade.
Então o fogo, cada uma das suas homilias,
corre pelo vazio veloz de todo o fogo.
No corpo desmantelado chamamos
à ignorância que de dentro nos mata
o destino, a casa a arder,
a passageira ondulação final.
Incham os órgãos até à gangrena,
as mucosas apodrecem, os tendões
esmagam-se de encontro à terra
numa dança de cinza.
De vez em quando passam os cavalos,
vão pelo silêncio para o alto.
De cada vez os teus olhos pousam
na pradaria de silva e cana seca.
Passam os cavalos com o cavaleiro,
enredam arvoredos, o seu tropel sustém
tocas mineiras, muros derruídos, a tarde
uma canção em luta. Nada traz
nenhum aviso ao plaino ácido,
ao mundo sem açaime.
E chega o escuro
donde desapareceram os cavalos. A vigília
em ligadura, sufocações por trás do que não sabemos,
uma praga certa vez ouvida, incurável na recordação.
Líquidos que batem, molas que não agarram,
galhos donde evapora a seiva.
Uma casa arrasta para longe
do humano, a natureza traz-nos
ao que somos diante de coisa alguma.
Se eu tivesse uma máquina suspeita
que, de encontro ao pano da montanha
e do mar em seu redor, arrancasse
o que pelo sol fora abatido,
animais ominosos ouvir-se-iam de repente.
Assim, apenas em redor do meimendro
se debruçam os arcos rasteiros da amica.
Tanto tempo os confundi com as azedas
pelo campo desarticulado.
Na cremação viscosa dos telhados,
no cerco dos olhos incapazes de seguir,
no alarme do verdete da fonte,
no túnel donde escorre a fuligem,
no perigo de passeios com cadastro
perdi todo o trevo desses lábios
que sabiam prender-se com os meus.
In “Alta Noite em Alta Fraga”
Editora Relógio d´Água
Joaquim Manuel Magalhães
N.1945
SINTO A PERFEIÇÃO DE UM CORPO
Sinto a perfeição de um corpo
e nos seus olhos perpassa um pouco o medo.
Serei eu quem tu vês?
Quem me abraçou outro dia não é já quem me abraça?
Sinto o não e o sim - e a inflexão da noite.
Vivo à superfície de um corpo negro e fundo.
O amplexo é real
e o que escrevo é o frémito.
Porque é tudo tão breve e tão longo, não sei.
Tenho os olhos fechados de abertos de ternura.
Tenho um pouco a paz de uma noite vivida.
Ciclo do Cavalo – 1975
In “SIGNOS”
Lisboa Editora
António Ramos Rosa
1924 – 2013
NÃO FECHES AS ASAS
Se é um pássaro não feches as asas
Mesmo chegando a escuridão
Com elas podes proteger as casas
Se sobrevoas na amplidão
Porque tu de asas abertas
Saberás as coisas certas
E quando chega a noite lentamente
A noite que nos traz a escuridão
Os pássaros dormirão certamente
Fechada toda a luz na amplidão
Mas tu meu pássaro
Não feches as asas
Sózinho, na noite voando veloz
Não serás pássaro de mau agoiro
Mas a protecção que Deus dá p’ra nós
Valendo bem mais do que vale o oiro
E sobre as nuvens cobertas
Passearás de asas abertas
In “Versos para um dia”
Edição da Autora
Manuela Campos Monteiro
N. ?
DAI-ME, SENHOR
Dai-me, Senhor,
cada dia a palavra,
a semente de fogo necessária
à lavoura. Dai-me ainda
a graça de uma vida devastada
de amor.
Mas livrai-me do medo
de ver a prece atendida.
In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”
Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria
Editora Terramar
Flor Campino
N. 1934
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