SOTAQUE DA TERRA
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol
In “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
Editorial Caminho
Mia Couto **
(Escritor Moçambicano)
N. 1955
** Nome literário de António Emílio Leite Couto
SOMOS LIVRES
Ontem apenas
fomos a voz sufocada
dum povo a dizer não quero;
fomos os bobos-do-rei
mastigando desespero.
Ontem apenas
fomos o povo a chorar
na sarjeta dos que, à força,
ultrajaram e venderam
esta terra, hoje nossa.
Uma gaivota voava, voava,
assas de vento,
coração de mar.
Como ela, somos livres,
somos livres de voar.
Uma papoila crescia, crescia,
grito vermelho
num campo qualquer.
Como ela somos livres,
somos livres de crescer.
Uma criança dizia, dizia:
"Quando for grande
não vou combater".
Como ela, somos livres,
somos livres de dizer.
Somos um povo que cerra fileiras,
parte à conquista
do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
não voltaremos atrás.
(Single, DECCA SPN179G, 1974)
Ermelinda Duarte
N. 1946
O ÓDIO E O AMOR
Ouvi que o Ódio e o Amor
Jogaram a matar um dia,
A quem matava melhor:
Um se armou todo de dor,
Outro todo de alegria.
Ia o Ódio, o arco atesado,
Sempre envolto em fúria brava,
Fero, medonho, indignado:
Ia o Amor, mui repousado,
Salvando a quantos topava.
As gentes, que o Ódio viam
De tal jeito, anteparavam,
E as mais sem parar fugiam:
As setas se lhe perdiam,
Como do arco lhe voavam.
Mas indo delas fugindo
Os tristes homens com medo,
Eis o Amor, que era já indo,
Vai matando e vai ferindo,
Muito falso, e muito quedo,
Depois ao fazer da conta,
Com ser destro o Ódio e membrudo,
Não fez nada, ou tanto monta;
E o Amor só, sem perder ponta,
Tinha morto quase tudo.
Donde de certo se sabe,
Que por mais que o Amor estude,
Inda o Ódio é menos grave;
Somos tais, que em nos não cabe
Excesso, nem de virtude.
In “Obras Métricas”
D. Francisco Manuel de Melo
1608 – 1666
Ó VÉSPERA DO PRODÍGIO
Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
Sonetos Românticos IV
In "Poesia Completa "
Edições D. Quixote
Natália Correia
1923 – 1993
CHUVISCO
Que saudade, meu amor,
Daquela chuva miudinha
Que era a tua e era minha,
Que molhava nosso rosto,
Em pleno mês de Agosto!
Hoje deitado à lareira,
Ping, ping, na caleira,
Contigo ao fogo enlaçado,
Sonho ainda acordado,
Com as lágrimas na folhagem.
Ping, ping, não é miragem
(Que felizes, Deus meu!).
E a chuva miudinha
Continua tua e minha,
Mas já não molha nosso rosto
E não estamos em Agosto!
In “O Livro da Nena” – Fevereiro de 2008
Papiro Editora
Maria Irene Costa
N. 1951
PRINCESA PERFEITÍSSIMA
À rainha D. Leonor
Nobreza de alma mais do que riqueza,
Tesoiros de valor no coração,
Nasceu em Portugal, linda princesa,
A glória e o louvor desta Nação.
Chorando um filho amado, essa tristeza
Redobra-lhe a ternura e a devoção,
E adopta como filha a Pobreza,
Na mais total e pura doação.
“Misericórdia”! Clamam, noite e dia,
A Dor, a Angústia e a Fome que, à porfia,
Esmolam caridade aos abastados.
Princesa perfeitíssima! És modelo
Desse Ideal de Amor, supremo e belo,
Que fez de ti a Mãe dos deserdados!...
In "Poemas de uma Vida"
Gráfica Almondina
Irmã Maria Rita Valente-Perfeito
N. 1920
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