PELICANO
Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar -
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.
In “Poesia Brasileira do Séc. XX “
(Dos Modernistas à Actualidade),
Antígona
Adélia Prado
(Poetisa Brasileira)
N. 1936
SER POETA
É ser alguém
Que pensa escrever bem
Sobre sonhos, fantasias,
Amor e suas magias…
Ser poeta é ser alguém,
Que nos fala de saudades
Desenganos e verdades;
É ser louco pensador
Que muito sofre por amor.
A beleza o encandeia
E em noite de lua cheia
– Oh, a grande maravilha!
Espalha aos quatro ventos,
Que a natureza é filha
Dos seus nobres sentimentos!
Ser poeta é ser alguém,
Que não tem pai nem tem mãe,
E sempre durante a vida
Almejou ter por guarida,
Um coração extremoso,
Que com amor o defendesse,
Das ondas do mar tenebroso!
Ser poeta é ser alguém,
Que conhece muito bem,
O mundo e seu desamor,
Do qual ri, louco de dor!
In “O Livro da Nena” – Fevereiro de 2008
Papiro Editora
Maria Irene Costa
N. 1951
AMBIÇÃO DE POETA
"Não quero um poema bem comportado",
Talhado num molde perfeito,
Em linguagem filigranada,
Com "chave de ouro" no fecho.
Não quero grades para o sentimento!
Quero, sim, meu verso nascendo livre,
Sem metro, sem rima nem cor,
Seja branco, vermelho ou amarelo...
Eu quero mesmo é que todos saibam
Porque choro, porque canto ou protesto.
Não quero ter meu nome consagrado,
Como poeta clássico ou moderno,
Rotulado, enquadrado num estilo...
Nem ser tema para qualquer debate.
Eu quero da poesia o que é mais raro:
Fazer meus versos como quem respira,
Falar das coisas que todo mundo sente,
Eu quero só ser um poeta simples.
In "Matizes",
Editora Blocos – 1999 – Rio de Janeiro
Virgínia Vendramini
(Professore e Poetisa Brasileira)
N. ??
DIÁRIO DUMA MULHER
Meu rosto já tem vincos de cansaço.
Murcharam como as rosas minhas faces.
Já não posso estreitar-te num abraço,
sem temer, meu Amor, que não me abraces!
O luar nos meus olhos fez-se baço.
Meus lábios, se algum dia tu beijasses!...
Meu passado, porém, morreu no espaço,
qual nuvem que em chuvisco transformasses!
O futuro não tem de que viver.
O amor — raízes mortas que não nascem —,
os sonhos, estão como se embarcassem
num cruzeiro de calma, sem saber
que o é... Mas essa calma hoje é sinónimo
de um sentimento misterioso, anónimo...
In "Atrás do Tempo"
Coimbra Editora
Isabel Gouveia
N. 1930
CAMINHO
Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.
Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé.
Devia sorrir de outro modo
o Cristo que vai de pé.
E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.
Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.
In “Doze Poemas de Circunstância”
Gabriel Mariano **
(Poeta Cabo-Verdianos)
1928 – 2002
** Pseudónimo de José Gabriel Lopes da Silva
OLHOS DO SONHO
Certa noite soturna, solitária,
Vi uns olhos estranhos que surgiam
Do fundo horror da terra funerária
Onde as visões sonâmbulas dormiam...
Nunca da terra neste leito raso
Com meus olhos mortais, alucinados...
Nunca tais olhos divisei acaso
Outros olhos eu vi transfigurados.
A luz que os revestia e alimentava
Tinha o fulgor das ardentias vagas,
Um demónio noctâmbulo espiava
De dentro deles como de ígneas plagas.
E os olhos caminhavam pela treva
Maravilhosos e fosforescentes...
Enquanto eu ia como um ser que leva
Pesadelos fantásticos, trementes.
Na treva só os olhos, muito abertos,
Seguiam para mim com majestade,
Um sentimento de cruéis desertos
Me apunhalava com atrocidade.
Só os olhos eu via, só os olhos
Nas cavernas da treva destacando:
Faróis de augúrio nos ferais escolhos,
Sempre, tenazes, para mim olhando...
Sempre tenazes para mim, tenazes,
Sem pavor e sem medo, resolutos,
Olhos de tigres e chacais vorazes
No instante dos assaltos mais astutos.
Só os olhos eu via! -- o corpo todo
Se confundia com o negror em volta...
Ó alucinações fundas do lodo
Carnal, surgindo em tenebrosa escolta!
E os olhos me seguiam sem descanso,
Suma perseguição de atras voragens,
Nos narcotismos dos venenos mansos,
Como dois mudos e sinistros pajens.
E nessa noite, em todo meu percurso,
Nas voltas vagas, vãs e vacilantes
Do meu caminho, esses dois olhos de urso
Lá estavam tenazes e constantes.
Lá estavam eles, fixamente eles,
Quietos, tranquilos, calmos e medonhos...
Ah! Quem jamais penetrará naqueles
Olhos estranhos dos eternos sonhos!
Janeiro de 1897
In “Faróis”
Cruz e Sousa
(Poeta Brasileiro)
1861 – 1898
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