CANÇÃO DA ÚLTIMA ESPERANÇA
Rompa-se o corpo e fique
O centro de seu centro.
Que então se verifique
Nua a alma lá dentro.
Mas nua nem que seja
No rictus de ironia
De uma boca que beija
Como quem se desvia.
Que só se verifique
O centro do seu centro
Se, morto o corpo, fique
Nua a alma lá dentro.
In “As Folhas de Poesia Távola Redonda"
Fundação Calouste Gulbenkian
Boletim Cultural – Série VI – n.º 11 – Outubro de 1988
Carlos Lemonde de Macedo
N. 1921
ESCREVER
Se eu pudesse havia de... de...
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não... ou sim.
E, como isto, continuando...
E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a braveza
do jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava...
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse...
fino e sem cor... medroso...
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito...
Amor que se não tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos...
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente...
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?
Irene Lisboa
1892 – 1958
VÍRGULA
Eu menino às onze horas e trinta minutos
a procurar o dia em que não te fale
feito de resistências e ameaças — Este mundo
compreende tanto no meio em que vive
tanto no que devemos pensar.
A experiência o contrário da raiz originária aliás
demasiado formal para que se possa acreditar
no mais rigoroso sentido da palavra.
Tanta metafísica eu e tu
que já não acreditamos como antes
diferentes daquilo que entendem os filósofos
— constitui uma realidade
que não consegue dominar (nem ele próprio)
as forças primitivas
quando já se tem pretendido ordens à vida humana
em conflito com outras surge agora
a necessidade dos Oásis Perdidos.
E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
— são da máxima importância as Velhas Concepções pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.
Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida.
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como o frágil véu que nos separa vedados e proibidos.
In "Ossóptico e Outros Poemas"
António Maria Lisboa
1928 – 1953
APODERAVA-SE DAS MINHAS PALAVRAS
Apoderava-se das minhas palavras
como se fossem uma toalha do seu rosto
alguns utensílios reservados para a sua vida.
Eu escrevia casa e a casa teria de ser a defesa do nosso amor.
Eu escrevia cama e a cama transformava-se num jogo de silêncio.
Vivia por trás da minha escrita
como se preenchesse a alma de tudo o que não entendia.
Queria que eu mobilasse a vida só com palavras
breves imagens que fossem o retrato do meu pensamento.
Eu proporcionava-lhe a felicidade como um enigma
em cada palavra um sentimento formalmente virtual
depois abandonava-a com a ilusão do espaço decorativo.
In “Área Afectada”
Editora Temas Originais – 2010
Fernando Esteves Pinto
N. 1961
A VOLTA DO BOÉMIO
Boémia
Aqui me tens de regresso
E suplicante te peço
A minha nova inscrição
Voltei
Para rever os amigos que um dia
Deixei a chorar de alegria
Me acompanha o meu violão
Boémia
Sabendo que andei distante
Sei que essa gente falante
Vai agora ironizar
Ele voltou
O boémio voltou novamente
Partiu daqui tão contente
Por que razão quer voltar ?
Acontece que a mulher que floriu o meu caminho
De ternura meiguice e carinho
Sendo a vida do meu coração
Compreendeu e abraçou-me a sorrir
Meu amor, você pode partir
Não esqueça o seu violão
Va rever os teus rios
Teus montes, cascatas
Va sonhar com nova serenata
E abraçar seus amigos leais
Va embora
Pois me resta o consolo e a alegria
De saber que depois da boémia
E de mim
Que você gosta mais…
Adelino Moreira
1918 – 2002
(Compositor luso-brasileiro)
BICICLETA
Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais –
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá á pata
como os outros animais.
.
O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
entre as rimas e o suor, aparece e
desaparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa
floresce sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.
.
De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
.
Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.
.
“Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Herberto Hélder
N. 1930
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