VIOLADA
Possuíram-te nas ervas,
Deitada ao comprido
Ou lívida a pé:
Do estupro conservas
O sangue e o gemido
Na morte da fé.
Chegaste a cavalo
Trémula de espanto:
Esperavas levá-lo
Com modos de amor:
O fátum, num canto,
Violento ceifou-te
O púbis em flor:
Dou-te
O acalanto
Mas não há palavras
Para tal horror!
Vem ainda em cós, mulher,
Limpa as tuas lágrimas no meu lenço:
Nem pela dor sequer
Eu te pertenço.
O cavalo fugiu,
Deixou-te em fogo a fralda:
Que malfeliz Roldão
Para tal Alda!
Ao frio, ao frio,
Tinta de ti é a água e sangue o chão.
Ponta Delgada a arder
Do próprio pejo, quis
Em verde converter
O incêndio do teu púbis.
Mulher, não me dês guerra,
Oh trágica enganada:
Tu és a minha terra
Na carne devastada
Como a Ilha queimada.
In "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"
Imprensa Nacional Casa da Moeda
Vitorino Nemésio
1901 – 1978
MORENA
Morena, morena
Dos olhos castanhos,
Quem te deu morena,
Encantos tamanhos?
Encantos tamanhos
Não vi nunca assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.
São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos galantes,
Teus olhos morena
São dois diamantes.
São dois diamantes
Olhando-me assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.
Morena, morena
Dos olhos morenos,
O olhar desses olhos
Concede-me ao menos.
Concede-me ao menos
Não sejas assim.
Morena, morena
Tem pena de mim.
In “As Pupilas do Sr. Reitor”
Ed. do Círculo de Leitores
Júlio Dinis
(pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho)
1839 – 1871
CANÇÃO DO PASTOR
Deus fala comigo a horas mortas
Não quer olhar o vulto impuro de ninguém
Por isso, vem
Quando se fecham as portas
Os ralos cantam nas hortas
E se espalha a noite pela serra além
Desgarrado, numa corte ao lado
Um bezerro berra
Se à tona da terra acaso andar alguém
Quando se abre ao silêncio a solidão da serra
E quando tudo mais iníquo encerra
Então Deus não vem...
Dorme a vida no seio da noite
Como um menino no colo da mãe
Espero-o só, além dos povoados
Nas charnecas e montados
Num cenário espectral de silêncios e de enredo
Deus vem!... Mas não diz nenhum segredo
Pela noite fora, pelo céu além
Vai de mim luminoso para os astros
Num esplendor de sideral fulguração
Tal era tal fiquei
Lameiros pastos, o gado, a terra, o húmus, a germinação
Ah, que Deus engana e desengana.
O tudo transformado em seiva e em chão!
Serena etérea vida além da Vida!...
Não durmas, coração.
In “Jornal dos Poetas & Trovadores”
Ano XIX 3ª Série n.º 10
Maio/Junho de 1999
Agostinho de Mello Júnior
CAIXINHA DE MÚSICA
impregno-me em ti como um perfume
como quem veste a pele de odores ou a alma de
cetins
quero que me enlaces ou me enfaixes de muitos
laços
abraços fitas ou fios transparentes
em celofane brilhando uma prenda
uma menina te traz vestida de lumes
incandescendo incandescente
te quer embrulhada em véus de seda e brocado
encantada a serpente a flauta o mago
senhor toca
e quando me toca
o corpo eu abro
caixinha de música
dentro
com bailarina que dança
In “Rosas da China”
Quetzal Editores
Ana Mafalda Leite
(Poetisa Luso-Moçambicana)
N. 195?
CALÇADA DE CARRICHE
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
In “Teatro do Mundo” – 1958
António Gedeão
(pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)
1906 – 1997
. Mais poesia em
. Eu li...
. Eu li... Charles Baudelai...
. Eu li... Carlos Drummont ...
. Eu li... Juan Ramón Jimén...
. Eu li... Vincenzo Cardare...