MARIA-SEM-CAMISA
Maria-Sem-Camisa, a sem dinheiro,
Passando pela vida ao Deus-dará
Tem fama de ser louca e de ser má
Mas, no fundo, é poeta a tempo inteiro...
Maria vai plantando o seu canteiro
De sementes de si e o que não há
Inventa-o a Maria e tanto dá
Ter pouco se tão rico se é primeiro...
Maria-Sem-Camisa planta ideias
E disso vai colhendo o seu sustento
Sem cuidar da chegada ou da partida...
Os frutos que ela colhe são candeias,
São estrelas a luzir no firmamento
Da órbita em que traça a sua vida...
In "Poeta Porque Deus Quer"
Maria João Brito de Sousa
PARA TI O MEU VERSO
Um verso que tu entendas,
Pois é para ti meu verso,
Terá que falar de rendas,
De roca e fuso, e de terço.
Tem de ter uma paisagem
Que meta rios e montes
E campos verdes e aragem
E flores e muitas fontes.
E, porque gostas de cores,
Um caminho de arco-íris,
Para ires quando fores
E, quando quiseres, vires.
In “Fátima Missionária”
Frei Lopes Morgado
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, toma-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A critica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras excepções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas às fortunas
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos
Os meus alexandrinos...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantêm-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Cesário Verde
1855 – 1886
SAUDADES TRÁGICO-MARÍTIMAS
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
São meus Avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos naufrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinas, presságios,
de além, de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Naufraguei cem vezes já...
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
vi-a nua, na praia áspera e feia,
com os olhos implorando
- olhos de esposa e mãe -
e vi-a, seus cabelos desatando,
cavar a sua cova e enterrar-se na areia.
- E sozinho me fui pela praia além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Escuto em mim, – oiço a grita
da rude gente aflita:
- Senhor Deus, misericórdia!
- Virgem Mãe, misericórdia!
Doidos de fome e de terror varados,
gritamos nossos pecados,
e sai de cada boca rouca e louca
a confissão!
- Senhor Deus, misericórdia!
- Misericórdia, Virgem Mãe!
e o vento geme
no bulcão
sem astros;
anoitecemos sem leme,
amanhecemos sem mastros!
E o mar e o céu, sem fim, além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Ah! Deus por certo conhece
minha voz que se ergue, branca e sozinha,
- flor de angústia a subir aos céus varados
p'la dor da ladainha!
Transido, o clamor da prece
do mesmo sangue nos veios
Deus conhece os meus olhos alongados;
onde o mar e o céu deixaram
um pouco de vago anseio
nesse mistério longo do seu halo...
Rezam em mim os outros que rezaram,
e choraram também;
há um pranto português, e eu sei chorá-lo
com lágrimas de além...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Ó meu amor, repara
nos meus olhos, na sua mágoa clara!
Ainda é de além
o meu olhar de amor
e o meu beijo também.
Se sou triste, é de outrora a minha pena,
de longe a minha dor
e a minha ansiedade.
Vês como te amo, vês?
Meu sangue é português,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim...
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar
In “Ilhas de Bruma” – 1917
Afonso Lopes Vieira
AS ÁRVORES E OS LIVROS
As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
In “Herbário”
Assírio & Alvim
Jorge Sousa Braga
N. 1957
ESTRELA DO PASTOR
Estrela do pastor,
ouve esta guitarra:
se meu amor me ama,
a porta bata,
vento fino,
flor na estampa do lençol
se abra
abrupta.
Estrela polar,
ouvido de lata:
se meu amor pensa em mim,
ruído de asas e
o limo da hora
escorra das calhas,
alguém assobie,
abelhas.
Asterisco à toa,
acrobata:
se meu amor não me ama
os barcos retornam já,
a lua se parte
ao meio,
cai uma banda na rua,
a outra, no fundo do mar.
Estrela cadente,
mate-me.
In “Desassombro”
Edições Quasi – 2001
Eucanaã Ferraz
(Poeta Brasileiro)
CARONTE
Caronte, juntos agora remaremos:
eu com a música, tu com os remos.
Meus pais, meus avós, meus irmãos,
já também vieram, pelas tuas mãos.
Mas eu sempre fui a mais marinheira:
trata-me como tua companheira.
Fala-me das coisas que estão por aqui,
das águas, das névoas, dos peixes, de ti.
Que mundo tão suave! que barca tão calma!
Meu corpo não viste: sou alma.
Doce é deixar-se, e ternura o fim
do que se amava. Quem soube de mim?
Dize: a voz dos homens fala-nos ainda?
Não, que antes do meio sua voz é finda.
Rema com doçura, rema devagar:
não estremeças este plácido lugar.
Pago-te em sonho, pago-te em cantiga,
pago-te em estrela, em amor de amiga.
Dize, a voz dos deuses onde principia,
neste mundo vosso, de perene dia?
Caronte, narra mais tarde, a quem vier,
como a sombra trouxeste aqui de uma mulher
tão só, que te fez teu amigo;
tão doce - ADEUS! - que canta até contigo!
In “Mar Absoluto e Outros Poemas”
“Ler Por Gosto” - Areal Editores
Cecília Meireles
(Poetisa Brasileira)
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