ALUCINAÇÃO
Trago os olhos inundados de poeira.
Vejo tudo na sombra que me vive
e a própria noite é uma cegueira
a fechar ilusões que nunca tive.
Desenham-se contornos imprecisos
nos auges limitados do meu ser.
E fico mudo, a ostentar sorrisos
que nem eu mesmo sei compreender.
Toda a paisagem é fechada e nua
como o tronco lavado dum arbusto,
onde os esguios caracóis da lua
tecem meadas de susto.
Perturba-me a penumbra como um cio.
Quero lançar a minha angústia aos ventos,
e o meu desejo alçado é como um frio
aborto de irreais lamentos.
Sinto-me aflito com a dúbia luz
que irrompe da fundura dos pinhais.
Estalam ecos. E o pavor conduz
meu corpo a regiões sinistras, outonais.
Cavam-se abismos fundos a meus pés
e eu fico a olhá-los, espantado e quedo.
Rebentam violências de marés
à minha volta, a transportar o medo.
Noite opressiva, esta que me fita.
(E a minha angústia é cada vez maior.)
Mas, de repente, como quem medita
e se rebela contra a sua dor,
lanço, obstinado, mãos à tatuagem
que me tapa os olhos delirantes
e vejo-me sentado a beber a aragem
que o dia traz nos braços madrugantes.
In “Vocação do Silêncio”
Biblioteca de Autores Portugueses,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
Lisboa, 1990
Albano Martins
NATAL
Estendeu as mãozitas para o Céu
E lá do Céu uma estrela sorria...
Mas o pobre Menino bem sabia
Que a estrela estava distante...
- Foi nessa noite que o Menino nasceu...
Quem nasce não sabe...
Mas o Menino já sabia,
Ó noite de Natal
Tão gélida tão fria!...
Para vestir o Menino
Quem lhe dá o enxoval?
Treme de frio coitadinho,
Nas palhas do bercinho
Daquele humilde curral.
A Estrela cortou o céu
E sobre o Menino desceu
E nesse instante fugiu!...
Depois, já era luzeiro
Aquele humilde curral!...
Mas inda não era dia,
Porque o sol não nascia...
E das bandas do deserto
Uma caravana surgia!...
Sobre as palhinhas geladas,
Nuzinho como nasceu,
O Menino a tiritar
Sorria... Para o Céu!...
In “Saudades de Amor” - 1966
Jacinto de Almeida
CONTUDO
Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.
Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.
Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.
Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.
In “Os Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa
Fernando Pessoa – Poesia de Álvaro Campos – Vol. II”
Assírio & Alvim e Herdeiros de Fernando Pessoa
(edição de Teresa Rita Lopes), Lisboa, 2002
Da presente edição:
Editora Planeta DeAgostini, S.A. – Lisboa
Colecção dirigida por Vasco Graça Moura
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
UMA LÁGRIMA
Dos olhos desprendida,
uma gota preciosa,
pela face setinosa,
levemente colorida,
deslizou pura e serena
– essa gota de cristal –
e foi perder-se afinal,
na tua boca pequena.
In Livro "Trovas Portuguesas" – Porto – 1924
Casa Editora de A. Figueirinhas
Campos Teixeira
UMA ESMOLINHA POR AMOR DE DEUS!
O pobre vai pedindo esmola por cada porta…
Vêde-o esfarrapado, ouvi-lhe a voz que corta
os corações, ansiando uma côdea de pão…
A chuva em fio canta; é como um violão
em que o Tempo dedilha, iguais, longas, profundas,
as endeixas do outono e folhas moribundas.
Lá vai de porta
Pede por Deus, que é Pai universal dos céus,
o Pai que envia ao mundo – imenso sorvedoiro –
ao pobre as ilusões, ao rico os sacos de oiro.
As lágrimas de sal que a esmola ao pobre enxuga,
são mais doces que o mel que a sacra abelha suga.
Como a abelhinha, a esmola, haurindo em cada dor
as lágrimas de fel,
vertendo-as docemente em cálices de amor,
pelo amor as transforma em lágrimas de mel.
Lá vai! Não pode mais. Trupa em tôdas as casas.
Faz um frio mortal. Lá dentro cantam brasas.
Porque é que não abris? Pede por Deus! Dizei:
Quem ganha mais na esmola?... Um só a dá; mas
sei que cai em duas mãos. Os generosos veios
do pão dado por Deus, são quais maternos seios,
fecundos como o céu, puros como o jasmim,
doando a dois irmãos, simultâneo festim:
Recebe o pão da esmola o pobre, mais os seus,
mas quem a dá recebe a bênção do seu Deus.
In “Do Homem e da Terra” – Poemas – 1932
Edições “Brotéria” – Lisboa
Serafim Leite
RASCUNHO RASGADO
Foi nesse papel qu’escrevi
todos os meus ideais;
foi nele que tentei registar
vidas com diferentes sinais.
Nessa folha percebi e senti
que a tinha por companheira,
sem lamúrias nem repreensão,
acompanhando-me a vida inteira.
Agora, tanta coisa nela registei,
formas diferentes d’um sofrer
que me faz ainda estremecer.
Já não a quero, para não me lembrar
estas tristes formas de viver
qu’um dia me fizeram chorar.
In “No Silêncio das Palavras”
artEscrita Editora, Ldª.
1ª Edição – Setembro.2007
Deolinda Reis
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