POETA
Sinto-me, às vezes, muito mais perfeito
E fujo de mim mesmo, alucinado!
As coisas balbuciantes no meu peito
Tomam gestos à luz de um Sol doirado.
Eu, que sou tôsco, inhabil, imperfeito,
Tenho uma fé de grande iluminado
E julgo, assim, que sou mais um eleito
Pra crear com amôr não sendo amado!
Vim ao Mundo na hora mysteriosa
Em que o Mundo comunga a luminosa
Dôr duma Cruz que o crava, lado a lado:
E os meus olhos, que vinham para vêr,
Alongados pra longe do meu Sêr,
Deixaram-me, ante Deus, ajoelhado!...
In "O Encantado",
Tipografia da Renascença Portuguesa
Porto – 1919
António de Sousa
1898 – 1981
A CABEÇA EM AMBULÂNCIA
Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã
ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos
ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta
quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância
O seu a seu tempo
In “Poesia”
Org. e prefácio de Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim - 2ª edição - 2001
Luiza Neto Jorge
1939 – 1989
A FOME
Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.
Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,
aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.
In “Vulcão”
Editora Quetzal - 1994
Luís Miguel Nava
1957 – 1995
DOLO OU DELÍRIO
Dolo ou delírio:
escolhe um, vive com ele.
Sustenta-o, usando de
manha ou martírio.
Escolhas o que escolheres,
foi para casos como o teu
que a solidão se fez.
Ao primeiro desencanto,
bebe dela a tragos longos
como quem bebe um licor
doloso, doloroso, delirante.
in “Arado”
Editora Cotovia – 2009
A. M. Pires Cabral
N. 1941
15.
Há um cabo a dobrar dentro do sangue
após o canto os cânticos há cabos que dobrar
é dar o sangue por causas carregadas
de utopias causas que sabemos mortais
de mortes naturais há um cabo a
transpor ao sol poente gasto de alegria
que outrora grassava neste mar vivo e
tão vivido que se chamava vida se
vida é nome a dar a qualquer coisa mais
correspondente do que isto que sentimos
do que isto de saber haver um cabo
ao fim da terra onde a esperança finda
e o tumulto das vagas arremete
contra o último reduto o súbito
crepúsculo que se salva se há um cabo
um promontório donde tudo se avista
onde ninguém nos avista nem o sangue
em cujo leito o tal cabo se pranta e
nunca se dobra por mais que se insista.
In “A Única Estação”
Edições Quasi
Nuno de Figueiredo
N. 1943
CONSTELAÇÕES
As estrelas têm um filamento de sangue
agarrado ao corpo da Terra.
Capilaridade da memória.
A terra arranca do chão árvores e astros.
Pensa e ama.
Pensar é astralizar a luz física.
Amar é corromper as formas do dia.
Exilá-Ias de noite no céu.
As estrelas são o resto imperceptível
do sangue da terra. Ideias que vivem.
A matéria pensa. A Terra quando dorme
liberta cintilações celestes.
O homem por sua vez desprende sonhos.
A terra é o leito onde o homem doente
se deita. Sobem do seu corpo
lenços brancos.
Cada cadáver liberta a fIutuação
dum tenuíssimo pano de linho.
Deixemo-nos morrer. Recostados na terra
anoitecidos pela morte e pelo amor
sobe de nós a palpitação insensível
dum sol.
É por isso que as estrelas são na terra
o que de nós no ar se evola.
Animam-se de vida sensível
na mais pura abstracção das formas.
Ao ser a memória dum corpo
seremos no Universo a matéria estelar.
Fogos, luminosos, inconformes.
In “Poesia Digital 7 poetas dos anos 80”
Ed. e Org.de Amadeu Baptista e José-Emílio Nelson
Editora Campo das Letras
António Cândido Franco
N. 1956
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