RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA
Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.
Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita
encarnada que ponho no cabelo.
Trança de trigo roxo Catarina
morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
[Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.
Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.
In “Obra Poética”
Edições Avante
José Carlos Ary dos Santos
1937 – 1984
A VIDA É TEMPO
Com alma, ideias, tempo, luta
Componho um homem, sou sujeito:
Penso-me livre numa gruta
Como pretérito imperfeito.
De era se faz o meu futuro,
Será será o meu passado
Como da era se faz o muro
Mais que da pedra levantado.
Se horas a nada levam tudo,
Nada nasceu, tudo é que é,
Haja ou não haja Sartre e o mudo
Deus Tudo-nada havido em fé.
Que ele é Deus mesmo no absoluto
Ser contestado, tão assente
Que se faz Deus na voz que escuto,
Mesmo que o negue, e me desmente
In “O Verbo e a Morte”
Moraes Editores - 1959
Vitorino Nemésio
1901 – 1978
TAL VAI O MEU AMIGO, CON AMOR QUE LH'EU DEI
-Tal vai o meu amigo, con amor que lh'eu dei,
come cervo ferido de monteiro del-Rei.
Tal vai o meu amigo, madre, con meu amor,
come cervo ferido de monteiro maior.
E, se el vai ferido, irá morrer al mar;
si fará meu amigo, se eu del non pensar.
-E guardade-vos, filha, ca ja m'eu atal vi
que se fez mui coitado, por guaanhar de min.
E guardade-vos filha, ca ja m'eu vi atal
que se fez mui coitado, por de min guaanhar.
In “Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana” – Lisboa - 1878
Pero Meogo
(Viveu na segunda metade do século XII)
Mantém grafia original
AMANHÃ VOU COMPRAR UMAS CALÇAS VERMELHAS
Amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.
Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.
In “Vago Pressentimento, Azul Por Cima”
Ilhas – 2000
Ana Paula Inácio
N. 1966
REMORSO
Lembro o seu vulto, esguio como espectro,
Naquela esquina, pálido, encostado!
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…
De mãos nos bolsos e de olhar distante
- Jeito de marinheiro ou de soldado…
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
Sou do Monte, Senhor! e seu criado…
Pobre rapaz da camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado?
- Vai-te rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento
Boina maruja ao lado!
Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço.
Indiferente à raiva do meu brado.
E ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…
Ali ficou… E eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado…
Ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado…
Soube eu, depois, ali, que se perdera
Esse que, eu só, pudera ter salvado!
Ai! do rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
In “Miserere” – 1948
Editora Portugália
Pedro Homem de Mello
1904 – 1984
O ANJO DA HUMANIDADE
Era na estância cristalina e pura,
Que além do firmamento rutilante
Se ergue longe de nós, e está segura
Em milhões de colunas de diamante;
Jerusalém celeste, onde fulgura
Do eterno dia o resplendor constante,
E onde reside a glória e majestade
D’Aquele que povoa a imensidade.
Na mansão mais recôndita e profunda
A soberana Essência o trono encerra,
Donde a fonte de amor brota fecunda,
Os astros animando, os céus e a terra;
Um mar de luz seus penetrais circunda,
Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,
Luz que em triângulo ardente se condensa
Quando o Eterno os oráculos dispensa.
Por toda a parte o azul e as pedrarias
Na cidade divina resplandecem;
Mil arcadas de sóis, mil galerias
De brilhantes estrelas a guarnecem;
Os anjos em lustrosas jerarquias
Nas harpas d’ouro melodias tecem,
Outros em coros adejando voam
E d’aromas e canto o céu povoam.
Eis de repente nos umbrais divinos,
Sobre as asas pairando, um anjo entrava,
Parecendo de sítios peregrinos
Que às regiões celestes assomava;
Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,
Qual rápido luzeiro perpassava,
Té que chegando ao trono do Increado,
Nos últimos degraus ficou pousado.
Pelos ebúrneos ombros o cabelo
Em aneladas ondas lhe caía;
A safira das asas sobre o gelo
Das roupagens reluzentes refulgia.
Mais brilhante não é, não é mais belo,
Comparado com ele, o astro do dia,
Ou a estrela que brilha quando a aurora
De purpurina luz o céu cobra.
Ao trono augusto levantou a frente,
Mas com as asas a toldou ansioso,
Não podendo suster o brilho ardente
Que despedia o foco luminoso.
A milícia dos anjos resplendente
Fixou atenta seu irmão formoso;
Os concertos pararam, e ele entanto
Assim falou entre o geral espanto:
«Eterno Ser, que as divinais moradas
«Enches de glória em majestoso assento,
«Fonte de vida e criações variadas,
«Que dás ao mundo poderoso alento;
«A cujo aceno tremem abaladas
«As colunas do etéreo firmamento,
«E cujo nome, que o universo entoa
«No céu, na terra, e nos abismos soa!
«Por teu mando supremo destinado,
«A conduzir a humana descendência,
«Desde que a mancha do cruel pecado
«A fez cair da primitiva essência:
«Venho afinal, Senhor, de teu mandado
«Dar-te conta fiel, após a ausência;
«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,
«E aguardar teus preceitos sacrossantos.
«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento
«Prosseguisse na terra a lei sob’rana
«Que rege, na amplidão do firmamento
«A criação que de teu seio emana:
«Essa lei do progresso e movimento
«Tenho cumprido na família humana,
«Desde que ao mundo, a combater seu fado,
«O desterrado do éden foi lançado.
«Primeiro, sobre a terra esclarecendo
«Seus duvidosos passos vacilantes;
«Depois, o justo e seu baixel sustento
«Nas águas do dilúvio sussurrantes:
«De novo à terra de pavor tremendo,
«Conduzindo mais puros habitantes:
«Mais tarde junto ao berço do Messias,
«Anunciando ao mundo novos dias.
«Agora, sobre as ruínas dum império
«Outro império de novo edificando;
«Agora, as povoações dum hemisfério
«Sobre as doutro hemisfério derramando:
«Já do teu Verbo o divinal mistério,
«Com as santas doutrinas propagando;
«Já mostrando por fim à humanidade
«Nova luz de justiça e de verdade.
«Quantos velhos sofismas desterrados!
«Quantos ídolos falsos em ruínas!
«Quantos sábios triunfos alcançados!
«Quantas conquistas imortais, divinas!
«Calcando o pó dos séculos passados,
«O homem corre ao fim que lhe destinas;
«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta
«Seu amor esmorece e desatenta.
«Seu valor esmorece! tantas lidas,
«Tanto lutar contínuo das idades,
«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,
«Tantas ruínas d’impérios e cidades:
«E o homem sofre, e as gerações perdidas
«Se revolvem num mar de tempestades,
«Sem ver luzir esse fanal jucundo
«Que por teu filho prometeste ao mundo.
«Quantos males ainda! a lei sublime,
«A lei d’amor que derramou teu Verbo,
«Sobre a face da terra, à voz do crime,
«Sucumbe e morre por destino acerbo.
«O férreo jugo que as nações oprime,
«Os humildes abate, ergue o soberbo,
«E o rei da terra, sobre a terra escravo,
«Sofre mesquinho seu eterno agravo.
«Por toda a parte, em lastimoso acento,
«Se ouve gemer a humanidade aflita.
«A terra, a mãe comum, nega alimento
«Dos filhos seus a à multidão proscrita:
«Enquanto folga em vícios o opulento,
«A indigência cruel na choça habita,
«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,
«Aperta morto à fome o seu filhinho.
«Entanto a guerra, que a ambição ateia,
«Ensanguenta as campinas e as cidades;
«A crua peste, que ninguém refreia,
«Converte as povoações em soledades;
«Destes males cruéis a terra cheia,
«Cobre-se inda de mil iniquidades;
«O vício, o crime, a corrupção devora
«A pobre humanidade, como outrora.
«Ao ver tanta miséria, o bom padece,
«O mau blasfema de teu nome santo,
«A voz dos inspirados esmorece,
«O futuro se envolve em negro manto...
«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece
«Que a humanidade te dirige em pranto,
«Subi confuso ao eternal assento,
«A depor a teus pés meu desalento.»
Disse, e um gemido d’aflição pungente,
Semelhante a dulcíssona harmonia,
Soltou do peito, reclinando a frente
Com celeste e ideal melancolia:
Assim pendendo ao longe no ocidente,
Se reclina saudoso o astro do dia;
Assim reclina a pálida açucena,
Açoutada do vento, a fronte amena.
Depois, continuando: «O Deus, quem há-de
«Sondar mistérios que teu seio esconde?
«Tuas leis divinais, tua vontade
«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:
«Os passos da mesquinha humanidade
«Aonde os levarei, Senhor, aonde?»
Uma voz retumbou do céu radiante.
Que ao anjo respondeu, dizendo: — AVANTE!
In “POESIAS” – 1858 – 1ª ed. 1856
Soares de Passos
1826 – 1860
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