Segunda-feira, 28 de Abril de 2014

Eu li... António Salvado

OS AMANTES

 

Encheram profunda taça e envolveram-se em fervor.
Ficou-lhes na boca — presa ao crescente desejo
de mais beberem, de mais conhecerem — o sabor
da outra Vida maior, onde os levara o ensejo
de ultrapassarem a carne. Em solidão limitados,
num barco sem dia a dia, compromissos ou tratados,
singram velozes sem tempo, definidos pela estrela
que lhes indica, serena e nitidamente, o norte.

Encheram de novo a taça; incha mais a panda vela.
E para serem iguais, apenas lhes falta a Morte!

In "Difícil Passagem"

Edição do Autor (?)

 

António Salvado

N. 1936

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Quarta-feira, 23 de Abril de 2014

Eu li... Soror Maria do Céu

DO PASTOR QUE SIRVO

 

Do pastor que sirvo,

É tal o jornal.

Que trigo lhe peço,

Centeio me traz.

 

Bem haja a Clemência,

Que é tão liberal,

Que se um pão lhe peço,

A um Deus me dá.

 

Amo uma pastora

Tão desnatural,

Que rosas lhe peço,

E espinhos me dá                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Bem haja a Clemência,

Que é tão liberal,

Que flores lhe peço,

E amores me dá.

 

Guardo umas ovelhas,

E é o gado tal,

Que venho em tosquia,

Quando vou por lã.

 

Bem haja a Clemência,

Que é tão liberal,

Que xerga lhe peço,

E ouro me dá.

 

Um enxame tenho,

E as abelhas tais,

Que lhe peço mel,

E trago azibar.

 

Bem haja a Clemência,

Que é tão liberal,

Que açúcar lhe peço,

E néctar me dá.

 

Cultivo uma vinha,

De tal natural,

Que e Setembro estamos,

E em agraço está.

 

Bem haja a Clemência,

Que é tão liberal,

Que vinho lhe peço,

E adega me dá.

 

In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”

Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria

Editora Terramar

 

Soror Maria do Céu

1658 – 1753

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Sexta-feira, 18 de Abril de 2014

Eu li... Joaquim Manuel Magalhães

OLHOS COR DE CHICOTE

 

Fiz uma casa com traves funestas

e a casa estava toda em fogo.

À hora da tarde quando o canto dos melros

e dos tentilhões começa a enlouquecer.

Por vezes a chama fugia da casa

à espera de viragem que não vinha.

 

A distância naufraga em soro branco,

o arbusto recolhe na falésia a profecia,

na carcuma onde a poalha não tem fim.

 

Torna-se ainda mais convulso

o remorso que tomba, ouvia-se

cada um dos soluços, pisados

por todos os que passavam.

 

Um nome ganha temor, a penumbra, o cipreste,

a crepitação das coisas que dizimam.

Um jorro negro é a sua frente.

E tu dizes-me: vais deixar

de ouvir as ondas, o verão não voltará,

podes esquecer e ser feliz.

 

Mas já é tarde. Não valia a pena

cada lágrima, a casa calcinada,

o bosque ao abandono, a geada no bebedouro,

o regresso de mais um sonho.

Em todos eles se liquefazem as árvores,

o torreão afogado do caminho, o curral,

o saque da fruta por larvas de uma grade.

 

E continua a arder no quarto

que rebenta.

Tudo se acumula na representação.

Assim um sismo

retira cidades do que foi cidade.

Então o fogo, cada uma das suas homilias,

corre pelo vazio veloz de todo o fogo.

 

No corpo desmantelado chamamos

à ignorância que de dentro nos mata

o destino, a casa a arder,

a passageira ondulação final.

Incham os órgãos até à gangrena,

as mucosas apodrecem, os tendões

esmagam-se de encontro à terra

numa dança de cinza.

 

De vez em quando passam os cavalos,

vão pelo silêncio para o alto.

De cada vez os teus olhos pousam

na pradaria de silva e cana seca.

Passam os cavalos com o cavaleiro,

enredam arvoredos, o seu tropel sustém

tocas mineiras, muros derruídos, a tarde

uma canção em luta. Nada traz

nenhum aviso ao plaino ácido,

ao mundo sem açaime.

 

E chega o escuro

donde desapareceram os cavalos. A vigília

em ligadura, sufocações por trás do que não sabemos,

uma praga certa vez ouvida, incurável na recordação.

Líquidos que batem, molas que não agarram,

galhos donde evapora a seiva.

Uma casa arrasta para longe

do humano, a natureza traz-nos

ao que somos diante de coisa alguma.

Se eu tivesse uma máquina suspeita

que, de encontro ao pano da montanha

e do mar em seu redor, arrancasse

o que pelo sol fora abatido,

animais ominosos ouvir-se-iam de repente.

Assim, apenas em redor do meimendro

se debruçam os arcos rasteiros da amica.

Tanto tempo os confundi com as azedas

pelo campo desarticulado.

 

Na cremação viscosa dos telhados,

no cerco dos olhos incapazes de seguir,

no alarme do verdete da fonte,

no túnel donde escorre a fuligem,

no perigo de passeios com cadastro

perdi todo o trevo desses lábios

que sabiam prender-se com os meus.

 

In “Alta Noite em Alta Fraga”

Editora Relógio d´Água

 

Joaquim Manuel Magalhães

N.1945

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Domingo, 13 de Abril de 2014

Eu li... António Ramos Rosa

SINTO A PERFEIÇÃO DE UM CORPO

 

Sinto a perfeição de um corpo
e nos seus olhos perpassa um pouco o medo.
Serei eu quem tu vês?
Quem me abraçou outro dia não é já quem me abraça?

Sinto o não e o sim - e a inflexão da noite.
Vivo à superfície de um corpo negro e fundo.
O amplexo é real
e o que escrevo é o frémito.

Porque é tudo tão breve e tão longo, não sei.
Tenho os olhos fechados de abertos de ternura.
Tenho um pouco a paz de uma noite vivida.

Ciclo do Cavalo – 1975

 

In “SIGNOS”

Lisboa Editora

 

António Ramos Rosa

1924 – 2013

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Terça-feira, 8 de Abril de 2014

Eu li... Manuela Campos Monteiro

NÃO FECHES AS ASAS

 

Se é um pássaro não feches as asas

Mesmo chegando a escuridão

Com elas podes proteger as casas

Se sobrevoas na amplidão

 

Porque tu de asas abertas

Saberás as coisas certas

 

E quando chega a noite lentamente

A noite que nos traz a escuridão

Os pássaros dormirão certamente

Fechada toda a luz na amplidão

 

Mas tu meu pássaro

Não feches as asas

 

Sózinho, na noite voando veloz

Não serás pássaro de mau agoiro

Mas a protecção que Deus dá p’ra nós

Valendo bem mais do que vale o oiro

 

E sobre as nuvens cobertas

Passearás de asas abertas

 

In “Versos para um dia”

Edição da Autora

 

Manuela Campos Monteiro

N. ?

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Quinta-feira, 3 de Abril de 2014

Eu li... Flor Campino

DAI-ME, SENHOR

 

Dai-me, Senhor,

cada dia a palavra,

a semente de fogo necessária

à lavoura. Dai-me ainda

a graça de uma vida devastada

de amor.

Mas livrai-me do medo

de ver a prece atendida.

 

 

In “Cem Poemas Portugueses no Feminino”

Selecção e Org. de José Fanha e José Jorge Letria

Editora Terramar

 

Flor Campino

N. 1934

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