TEORIA DAS CORDAS
Não era isso que eu queria dizer,
queria dizer que na alma
(tu é que falaste na alma),
no fundo da alma, e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve,
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada,
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente,
um vazio no vazio, vagamente ciente
de si, não haver resposta
nem segredo.
In “Atropelamento e Fuga”
Edições ASA
Manuel António Pina
1943 – 2012
TINHA UM CRAVO NO MEU BALCÃO
Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não?
In “Poesia e Prosa”
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
A MINHA HISTÓRIA
A minha história é simples
A tua, meu Amor,
É bem mais simples ainda:
"Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta..."
Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois;
Mas tão a sós, tão de manso,
Que só escutemos os dois.)
In “Cabo da Boa Esperança”
Portugália Editora
Sebastião da Gama
1924 – 1952
A VIDA ESTÁ ASSIM
A vida está assim: por telha aberta
chove o sangue em cima do calçado
fazendo o coração ficar alerta
não vá o mar chegar ao empedrado.
Adormecer num banco de jardim.
Sonhar coisas fugazes e eternas
deixando que alguns ratos de cetim
me subam ás varizes pelas pernas.
O tempo (esse animal) sofre de anginas
e já não há sequer zaragatoas,
overdoses, sprays, penicilinas
que troquem coisas más por coisas boas
tal como não se inventam as vacinas
contra o sorrateirismo das pessoas.
In “Sonetos Perversos”
Litexa Portugal
Joaquim Pessoa
N. 1948
MAS QUE MEMÓRIA
mas que memória
podemos ter
de nós?
e de qual tempo?
deste tempo exterior
em que
depois de criados
e decifrados
os consensuais alfabetos
da exploração
da vida
chegou o projecto Stardust
com material inalterado
desde o início
do sistema solar,
que não nos diz
se então já havia actos de amor
e portanto
não nos diz nada (?)
é preciso emparedar o demente
que propõe que podia haver
o que não há.
e outros
como ele.
acham-se todos
cada vez mais
perdidos
no meio do próprio ruído,
carregando
males
e mails
como se a diferença
entre ambos estes termos
não fosse
apenas o espaço
de uma ou outra letra,
e a ressonância
da voz do homem
que treme fora como a terra dentro.
In “Imitação de Ovídio”
Editora & Etc
Alberto Pimenta
N. 1937
TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR
Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.
In “Entre a carne e o osso”
Edições Língua Morta
Luís Filipe Parrado
N. 1968
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