SUFOCO
Eu também grito.
Não para que ouças ou te comova
minha aflição, afinal de nada me valeria
mais uma desculpa esfarrapada
ou aquela costumeira incompreensão.
Eu também grito.
Não para que me socorras, piedoso,
com mentiras rebatidas naquele calor
confuso, que critica a intensidade
e se defende de maior envolvimento.
Porque apenas te quero inteiro
– inferno! – para dentro me desintegrar
no delicioso prazer do meu orgasmo.
Eu me esforço, me agrido, me exijo
em meus bons motivos, discretamente,
sem te confrontar com perguntas profundas,
embaraçosas, cobradoras, irrespondíveis.
Eu grito e me viro – agora sabes –
porque sufoco.
In "Esfinge"
Thesaurus Editora – 2003
Gisele Lemper
(Poetisa Brasileira)
NATAL
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
In “Poesias” Fernando Pessoa.
Ática, 1942 (15ª ed. 1995)
Fernando Pessoa
1888 – 1935
O GRÃOZINHO TRANSVIADO
Ao ensacarem o grão
Para ir para o mercado,
Um deles caiu no chão
– E ficou abandonado.
Era muito rechonchudo,
Mas tinha a pele em ruguinhas;
Junto do nariz bicudo,
Fazia mesmo preguinhas.
Ao ver-se no chão, sozinho,
– Meu Deus, o que ele sentiu! –
Mas quem se importa, grãozinho,
Com aquele que caiu?...
«Para que foi que nasci?»
Dizia em voz abafada,
«Se agora estou para aqui...
Se não sirvo para nada?...»
«Até me custa dize-lo:
– Se vem a Dona Humidade,
Nasce-me na testa um grelo,
E não tenho utilidade!»
Nisto um senhor pé passou,
Que pisou o senhor grão,
E muito fundo o enterrou,
Sumindo-se dentro do chão.
Acabou-se! Era uma vez!...
Pobre grãozinho, coitado!
Ficara morte e enterrado?
– Isso imaginam vocês!
Pois nesse lugar, um dia,
Surgiu um rebento verde...
Na terra tudo se cria;
Na terra nada se perde.
Para quê descrer da sina,
Se tais coisas acontecem?
Se, por bondade divina,
Até as pedras florescem?!
In “Leituras” – 2 .º Tomo
Laura Chaves
1888 – 1966
VAGUEANDO
Eu vi, vagueando,
crianças feitas homens
e homens que são crianças.
Mulheres que são farrapos
e farrapos que são mulheres.
Eu vi, vagueando,
almas sofrendo sem corpo
e corpos sem alma, sofrendo.
Cabeças cheias de nada
e nada enchendo cabeças.
Eu vi...
um sorriso matando
e um beijo que tortura.
Um caixote de cartão querendo ser lar
e um leito feito de raiva e praguejar.
Uma rua sem casas, sem gente, sem vida.
Uma cidade sem voz, ultrajada, vencida.
Eu vi tudo e aceitei.
Não compreendi, mas desculpei.
Não fiz vénia mas consenti,
Fiz de conta que não vi. Fingi!
Depois de tudo o que calei,
de tudo o que não fiz,
tentei inventar uma cidade feliz
E continuei, silenciosamente, vagueando.
In “Nobre Povo”
Edições Gailivro
M. Lourdes dos Anjos
N. ???
NOSSA SENHORA DA ORADA
Aldeia de romance; a igreja a meio,
pomba branca tentando-a com as asas,
e alvas, também, ao derredor, as casas,
procurando o calor daquele seio!
E tudo limpo e claro. Sem receio
podiam-se beijar as pedras rasas
que o barro, às ondas, rubro como brasas,
cinge e contorna num ridente enleio.
As parreiras às portas, como redes
de verdura, mantelam os beirais,
o azul do céu pincela-lhe as paredes,
o amor à terra aquece as casas todas,
e terra e céu, em beijos virginais,
vivem cantando a festejar tais bodas.
Gustavo de Matos Sequeira
1880 – 1962
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