INSTRUÇÃO PRIMÁRIA
Não saibas: imagina...
Deixa falar o mestre, e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...
Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...
In “Diário IX”
Miguel Torga
1907 – 1995
LUA
Ele me deitou nua
em cima do calçamento
e eu sabia que era loucura
que era coisa de momento
pensei até que era a lua
danada no quarto crescente
ou era fúria de maré
crescendo dentro da gente
e eu me sentia suada
e eu me sentia escura
mas não tinha medo de nada
que toda paixão da coragem
e me deitei na calçada
com orgulho e vadiagem
e quanto mais me sujava
mas me sentia à vontade
mais eu queria e deixava
mais eu pedia e mais dava
e ria, gemia e brincava
de ter tanta liberdade
ele me deitou na rua
numa qualquer de passagem
e eu sabia que era loucura
que era coisa de um momento
de grande camaradagem.
In “Gaia”
Editora Codecri
Bruna Lombardi
(Escritora Brasileira)
N. 1952
SONETO SUPERDESENVOLVIDO
É tão suave ter bons sentimentos
consola tanto a alma de quem os tem
que as boas intenções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer bem
Por isso se no verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada
Consola mais viver assim no meio de muitos pobres
que conviver com gente a quem não falta nada
E no fim de tantos anos a dar do que é seu
independentemente da maneira como se alcançou
ainda por cima se tem lugar garantido no céu
gozo acrescido ao muito que se gozou
Teria este (se não tivesse outro sentido)
ser natural de um país subdesenvolvido
In “Obra Poética II”
Ed. Presença
Ruy Belo
1933 – 1978
CORES DE PARTO
O que eu vi,
À nascença, foi o céu.
No rasgão da retina,
A desatada luz: o meu segundo oceano.
Aprendi a ser cego
Antes de, em linha e em cor,
O mundo se revelar.
O que depois vi,
Ainda sem saber que via,
Foram as mãos.
Parteiros gestos
Me ensinaram quanto,
Das mãos,
A vida inteira vamos nascendo.
As mãos foram,
Assim, o meu segundo ventre.
Luz e mãos
Moldaram a impossível fronteira
Entre oceano e o ventre.
Luz e mãos
Me consolaram
Da incurável solidão de ter nascido.
In “Tradutor de chuvas”
Editorial Caminho
Mia Couto
(Escritor Moçambicano)
N. 1955
SUBVERSIVA
A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.
In “Na vertigem do dia”
Ferreira Gullar *
(Poeta Brasileiro)
N. 1930
* Pseudónimo de José Ribamar Ferreira
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