GRITO
Não posso já com ervas nem com árvores;
Prefiro os lisos, frios mármores
Onde nada está escrito.
Meu gosto da paisagem fez-se escuro;
Nenhures é o lugar que mais procuro
Como homem proscrito.
Eu bem sei: A verdura! A flor! Os frutos!
Mas não posso passar de olhos enxutos,
Meu campo verde aflito.
Porventura cegaram os meus olhos
Porque há nos silveirais flores aos molhos
- Tanta flor me tem dito.
Mas eu bem sei que movediços lodos
Que são o chão, as lágrimas de todos,
Meu coração contrito.
Eu não sei se amanhã será meu dia;
Recolho-me furtivo na poesia,
Incerto o chão que habito.
Ai de mim! Ai de mim, nuvem medonha!
Os homens conheci, bebi peçonha,
E é por isso que grito.
(Ossadas)
In “Obra Poética”
Afonso Duarte
1884 – 1958
CONVITE À FELICIDADE
Ditoso, Júlia, ditoso,
quem livre de inquietação
come os frutos que semeia,
e dorme no seu torrão;
que desconhece das cortes
intriga, esperança e receios,
que julga acabar-se o mundo,
onde acabam seus passeios.
Penúria e riqueza ignora,
dois escolhos da virtude,
e tira do seu trabalho
bens, prazer, vigor, saúde.
De iguais rodeado vive,
e só tem por superior
seu Criador no outro mundo,
na paróquia o seu pastor.
As aras jamais incensa
de Astreia, Minerva ou Marte,
mas Baco e Pomona e Ceres
lhe riem de toda a parte.
Mais apertado não vive
na avita cabana herdada,
que o rico em salões de estuque,
de alta, soberba fachada.
Em vez de jardins estéreis,
faz consistir seu prazer
em lhe à porta verdejarem
as couves que fez nascer.
Dorme em colmo um sono inteiro,
enquanto, em doirado leito,
o nobre se volve, e geme,
de aflição ralado o peito.
Ao lado lhe dorme a esposa,
fiel, inocente e bela;
o filhinho, imagem sua,
dorme em paz ao seio dela.
Se ela lhe diz: – eu te adoro,
eu te amarei toda a vida! -
de ser verdade o que escuta
nem um momento duvida.
Sabe que a fé, que a virtude,
virtude pura, ilibada,
dons mais belos que a beleza,
são numes da sua amada.
Ela não vive no meio
da corrupta mocidade,
que adorna, envenena, empesta,
das cortes a sociedade.
Não quer brilhar nos passeios,
nem de mil adoradores
vai disputar nos teatros
os suspiros e os louvores.
Passa a noite ao pé do esposo,
entre os filhos passa o dia,
o trabalho a ocupa sempre:
ser infiel poderia?
Da sua família é toda,
nela concentra a afeição,
que as damas à intriga, às festas,
ao jogo, aos enfeites dão.
Quer-se ornar nos santos dias?
Não se assenta ao toucador
em vez de jóias brilhantes
procura singela flor.
Para arranjar seus cabelos,
nem corre ao cristal da fonte;
não carece de outro espelho,
tem seu consorte defronte.
Ele lhe ensina a maneira
por que lhe ficam melhor;
ele lhe diz em que sítio,
e como lhe ajusta a flor.
Se lhe agrada, está contente;
e vai de inocência cheia
entrar com ele nas festas,
nas festas simples da aldeia.
Ah, Júlia! Que sorte a de ambos!
Sem longas filosofias,
sabem melhor do que os sábios
desfrutar serenos dias.
Os princípios, os sistemas,
sonhos de estéril vaidade,
jamais tornaram ditosa
a mesquinha humanidade..
Se existe o bem sobre a terra,
se queres, Júlia, este bem,
uma aldeia… uma cabana…
ternura… inocência… Ah, vem!
In “Biblioteca Digital”
Porto Editora
António Feliciano de Castilho
1800 – 1875
GREEN GOD
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era um corpo como um rio
em sereno desafio
com as margem quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.
(As Mãos e os Frutos)
In “Antologia Breve”
5ª ed. – Outubro.1985
Editora Limiar
Eugénio de Andrade
1923 – 2005
OLHAR
No caminho desta vida
sempre nos guia um olhar…
assim nas águas do mar
a luz dum astro caída.
Olhar é luz d’alvorada,
na qual desponta um desejo,
carícia meiga, velada
promessa casta dum beijo.
Olhar é sol em que passa
uma nuvem fugitiva;
a luz dum olhar aviva
dum rosto a divina graça.
Olhar é que esmorece,
num desengano perdida;
olhar é luz duma prece,
singela, pura, sentida.
Olhar é céu azulino
numa noite d’amargura
leva consigo o destino,
também nos traz a ventura.
In "Trovas Portuguesas" – 1924
Casa Editora de A. Figueirinhas – Porto
Campos Teixeira
QUANDO
Quando o silêncio invadir os meus dias
Na sequência de perdas importantes,
Quando a saudade destronar alegrias
E a hora for mais breve que os instantes
Quando a tua imagem for só esboço
E a tua voz uma alucinação
Quando não fizer sentido já o esforço
E a vida for, apenas, ilusão
Quando o Sol se escoar pelos meus dedos
Numa espera solene do infinito
E der a vez à lua, mais serena,
E ao desfilar de sonhos e segredos...
Direi, então, num final tão bonito,
Que tudo, bom ou mau, valeu a pena!
Fevereiro 1993
(Poemas do Rato Morto)
In “Jornal Poetas & Trovadores”
Nº 23 Ano XXIII 3ª Série
Julho/Setembro 2002
Ofélia Bomba
N. 1945
(Médica Psiquiatra e Poetisa)
PENSO NA MORTE
penso na morte
mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores
no abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus
na concha húmida de tua boca em cima dos números mágicos
anunciando o ciclo das águas e o estado do tempo
a memória dos dias resiste no olhar dum retrato
continuo só
e sinto o peso do sorriso que não me cabe no rosto
improviso um voo de alma sem rumo mas nada me consola
é imprevista a meteorologia das paixões
pássaros minerais afastam-se suspensos
vislumbro um corpo de chuva cintilando na areia
até que tudo se perde na sombra da noite... além
junto à salgada pele de longínquos ventos.
In “O Medo”
Contexto Editora – Lisboa
Al Berto
(pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares)
1948 – 1997
PROCISSÃO
Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.
Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!
Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!
Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.
Declamado por João Villaret
António Lopes Ribeiro
1908 – 1995
(Cineasta e jornalista)
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