A UMA MULHER
Quando a madrugada entrou eu estendi
[o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trémula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.
In “Operário em Construção e Outros Poemas”
Colecção Poesia Século XX – 5ª Edição (1976)
Publicações D. Quixote
Vinicius de Moraes
(Poeta Brasileiro)
ORVALHO, CHUVA E VENTANIA
Alguém que eu amo me pediu
Que eu falasse de orvalho, de chuva e ventania
Expliquei que eu não escolho tema p’ra poesia
É o tema que me escolhe, assim à revelia.
Não tenho controle do que ocorre então
Será que é isto que chamam de "inspiração"
Que chega de repente, não deixando opção
Como se algo estivesse a guiar a nossa mão?
Mas se eu tenho que falar do orvalho matutino
Eu diria que o orvalho é nocturno pranto divino
Para encher de encanto os olhos humanos
Ante os "diamantes" reflectindo o sol soberano.
E se eu tenho que falar de chuva mansa no telhado
Eu diria que a chuva é divina cantiga de ninar
Evocando infância, estórias, pipocas, aconchegos
Meu pai, minha mãe...na doce infância dos meus enlevos.
E se eu tenho que falar do vento que assobia
Eu diria que o vento é soturna melodia
Como se a natureza bradasse de melancolia
Ou como se eu suspirasse por Ele... de nostalgia!!!
In “Momentos Catárticos”
Fátima Irene Pinto
(Poetisa Brasileira)
PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei.
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso.
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo.
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
In ”Livro Sexto”
Edições Salamandra
Sofia de Mello Breyner Andresen
MOTIVO
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Cecília Meireles
(Poetisa Brasileira)
CÂNTICO VERMELHO
Amo-te Felisbela
com a voz silenciada do meu sangue irmão
Da mais funda gruta de África
nosso hino rebenta florindo
os velhos jacarandás do teu país
Ordeiro, calo-me
Mas é nos teus olhos que enraízo
os meus versos salgados
neles afogo para sempre!
o orgulho que me ensinam
e de que só me defende
tua ingénua mão espancada de séculos
Amo-te Felis
com o ímpeto desses rios
que meus avós sujaram
Amo-te Felis
na cândida melodia
das marimbas do teu povo
Amo-te Felis
no ritmo da mensagem cega, pura
das canções de tuas avós violadas
Amo-te Felis
com um amor marejado de lágrimas
as mesmas, querida,
que humedeciam nos mares antigos
o brumoso convés dos seus barcos negreiros
Mas só to direi simplesmente
quando à quieta luz dos dias que hão-de vir
o meu grito de guerra e de poeta
se quebrar em tua boca enfim livre
nos beijos despidos
da vergonha que me cobre.
In “Albas”
Quasi Edições
Sebastião Alba
(Pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves)
Poeta Português, naturalizado Moçambicano
SILÊNCIO
Toda a minha vida me escutaste em silêncio.
Tinhas à disposição as vozes enormes
do vento, das águas, do trovão, do pintassilgo —
mas nunca dei por que as usasses comigo.
Envelheci enredado
nas teias dessa mudez.
Ganhei a industriosa astúcia dos velhos
à custa de perder a candura original,
li com cada vez mais desenganada luz
o teu silêncio.
Assim, a princípio achava-o cúmplice,
quente e generoso. Um silêncio
de quem concorda e apoia,
e não acha necessário proclamá-lo.
Com a continuação,
começou-me a parecer o teu silêncio
já só condescendência. O silêncio
de alguém que se dispensa de mostrar
desacordo por simples cortesia.
In “As Têmporas da Cinza”
Cotovia – Lisboa – 2008
A.M. Pires Cabral
FADO
Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração
Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.
Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
Lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
– só emoção.
É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao deus dará.
Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
como um irmão.
1939
Adolfo Casais Monteiro
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