FÁBULA DA FÁBULA
Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia e moralizadora.
Que, em verso e prosa,
Toda a gente
Inteligente,
Prudente
E sabedora repetia aos filhos,
Aos netos e aos bisnetos.
À base de uns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.
E, realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava morria de fartura.
In “Antologia Poética”
Miguel Torga
OLHEI
Olhei o povo
Imerso em terror
E perguntei-me:
Onde está o amor?
Olhei a guerra,
A ambição voraz,
E perguntei-me:
Onde está a paz?
Olhei o deserto,
Outrora floresta colorida,
E perguntei-me:
Onde está a vida?
Olho este mundo,
Outrora limpo e puro,
E pergunto-me:
Ainda teremos futuro?
In “Fátima Missionária”
Patrícia Barrocas
SER MÃE
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
o coração! Ser mãe é ter no alheio
lábio que suga, o pedestal do seio,
onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.
Ser mãe é ser um anjo que se libra
sobre um berço dormindo! É ser anseio,
é ser temeridade, é ser receio,
é ser força que os males equilibra!
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Coelho Netto
(Escritor, político e professor brasileiro)
OS PEIXES
Avançam penosamente
através do negro jade.
Das conchas de mexilhão, azul-corvo, uma contínua
a ajustar os montes de cinza;
abrindo-se e fechando-se como
um
leque danificado.
As lapas, que se incrustam do lado
da ondulação, não se podem ali
esconder pois os raios de luz submersos do
sol,
divididos como fios
de vidro, movem-se com a rapidez de projectores
penetrando nas fendas –
fora e dentro iluminando
o
mar turquesa
desses corpos. A água impele um pedaço
de ferro por entre a férrea aresta
da falésia onde as estrelas,
grãos
de arroz rosados, a alforreca
salpicada de tinta, caranguejos como lírios
verdes, e cogumelos
venosos submarinos, deslizam uns sobre os outros.
Todas
as marcas
externas de violação estão patentes neste
edifício desafiador –
todos as características físicas do
de-
sastre –, ausência
de cornija, rastos de dinamite, queimaduras e
golpes de machado, eis o que sobressai
nele; a vertente do abismo está
morta.
Repetida
evidência que provou como consegue viver
onde não pode a sua juventude
renascer. Aí, o mar envelhece.
In”Poemas de Marianne Moore e Elisabeth Bishop”
Tradução de Maria Lourdes Guimarães
Campo das Letras
Marianne Moore
(Poetisa Americana)
MORTE
Não encontrei – e não há solidão maior! – com quem chorar
A morte de um amigo que se não
Despediu.
Fica tu, sejas tu quem fores,
fora dela.
Não lha mereces.
Sereno, o sofrimento já não dói.
É apenas uma tristeza
bonita.
Precisei-vos tanto, tanto!
A vossa presença
teria tornado mais leve a minha mágoa: mas a vida
que anda para trás e para diante
não parou.
Ninguém, nenhum de vós
veio trazer-me o consolo de uma lágrima.
Ainda bem.
Ter-vos-ia dito: se me virem na sarjeta, pisem-me em cima;
se me querem
bem,
não se condoam.
Por agora, nem sequer preciso de um colchão
para descansar como fazem os vivos – dormirei dentro
de um contentor
e aí chorarei sozinha
o meu amigo.
O meu amigo.
Ele é hoje uma semente
na terra.
Esta
sentirá a fome de suas mãos
quando um camponês
semear nela
uma batata grelada: e, então, quando a minha apertar,
mastigarei palavras limpas: honestas
como o eram
as suas.
O meu lugar à mesa onde ele me servia o vinho
à refeição
e ouvia os desconcertos
está desolado; por isso te peço,
vazio a quem nunca menti, deixa-me albergar
no teu nada – morar
dentro de ti.
In “O Meu Lugar à Mesa”
Quasi Edições
Eduarda Chiote
CANÇÃO PARA LUANDA
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
- Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
- Xé
mana Rosa peixeira
responde?
- Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
“Olá almoço, olá almoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferreréé”
- E você
mana Maria quitandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
“maboque, m’boquinha boa
dóce dócinha”
- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!
Zefa mulata
o corpo vendido
baton nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde está?
Mana Zefa mulata
o corpo cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!
- Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
Meninos das ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde está?
Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos,
caídos
mostraram o coração:
- Luanda está aqui!
In “Antologia Temática de Poesia Africana I”
Editora Livraria Sá da Costa
Luandino Vieira
(Poeta Angolano)
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