JÁ SE DERRETE A NEVE
Já se derrete a neve, e da montanha
Em líquida corrente ao vale desce,
Os campos rega, as margens humedece,
Borrifa a tenra flor, a relva banha.
No monte a brenha, o mato na campanha
No bosque a planta, enfim tudo floresce;
Até no tronco antigo a hera cresce,
E a rude penha novo musgo ganha.
O fresco Abril em toda a parte arvora
O verde pavilhão, em que se esmera
Toda a pompa gentil, que produz Flora.
Tudo alegre se vê; somente austera
Não quis a minha sorte, que até agora
Chegasse para mim a Primavera.
Paulino Cabral
(Abade de Jazente)
A CAVALGADA
A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.
São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...
E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...
E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...
Raimundo Correia
(Poeta Brasileiro)
SONHO DE MÃE NEGRA
Mãe negra
Embala o seu filho
E na sua cabeça negra
Coberta de cabelos negros
Ela guarda sonhos maravilhosos
Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Que o milho já a terra secou
Que o amendoim ontem acabou
Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho iria á escola
Á escola onde estudam os homens
Mãe negra
Embala o seu filho
E esquece
Os seus irmãos construindo vilas e cidades
Cimentando-as com o seu sangue
Ela sonha mundos maravilhosos
Onde o seu filho correria na estrada
Na estrada onde passam os homens
Mãe negra
Embala o seu filho
E escutando
A voz que vem de longe
Trazida pelos ventos
Ela sonha mundos maravilhosos
Mundos maravilhosos
Onde o seu filho poderá viver.
In “Antologia Temática de Poesia Africana I”
Editora Livraria Sá da Costa
Kalungano (Pseudónimo de Marcelino dos Santos)
(Poeta Moçambicano)
MÁQUINA DE ESCREVER
Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem de meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro carnaval.
Vende este rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, quase novo,
com poucas manchas de café boémio.
Vende também meus óculos antigos,
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.
Vende, além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído,
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.
Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei de meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.
Vende meus olhos a um Belchior qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta
refletindo um semblante de mulher!
Vende tudo ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa,
para ninguém chorar a minha morte,
sem realmente desejar que eu viva.
Podes vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo.
Mas poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.
Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro.
Mas não! ainda que te ofereçam ouro,
não vendas o meu filtro de tristezas.
Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta
e meu doce instrumento musical!
Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate, é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma.
Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias,
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura.
Deixa-a morrer também, quando eu morrer,
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera de meu último poema,
que as palavras não dão para fazer.
Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes.
E, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar.
In “Empório Brasil” – S. Paulo – 1988
Editora Clube do Livro/Melhoramentos
Guiosepe Ghiaroni
(Poeta e Jornalista Brasileiro)
A VOZ
É tão suave ess'hora,
Em que nos foge o dia,
E em que suscita a Lua
Das ondas a ardentia;
Se em alcantis marinhos
Nas rochas assentado,
O trovador medita
Em sonhos enleado!
O mar azul se encrespa
Co’a vespertina brisa,
E no casal da serra
A luz já se divisa.
E tudo em roda cala,
Na praia sinuosa,
Salvo o som do remanso
Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta
Nos desvarios seus;
E nessa paz que o cerca
Bendiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito
A alcíone gemente,
E nuvem pequenina
Ergueu-se no ocidente;
E sobe, e cresce, e imensa,
Nos céus negra flutua,
E o vento das procelas
Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas
Expira o vão furor
E do poeta a fronte
Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio,
Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava
Um negro pensamento,
Da alcíone ao gemido,
Ao sibilar do vento.
Era blasfema ideia,
Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota,
Que lhe dizia assim:
«Cantor, esse queixume
Da núncia das procelas,
E as nuvens, que te roubam
Miríades de estrelas,
E o frémito dos euros,
E o estourar da vaga,
Na praia, que revolve,
Na rocha, onde se esmaga,
Onde espalhava a brisa
Sussurro harmonioso,
Enquanto do éter puro
Descia o Sol radioso,
Tipo da vida do homem,
É do universo a vida:
Depois do afã repouso,
Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hino
Em dia de amargura;
Se te amostraste grato
Nos dias de ventura,
Seu nome não maldigas
Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia,
Do raio ao cintilar.
Ele o mandou: - a causa
Disso o universo ignora, -
E mudo está: - seu nume,
Como o universo, adora!»
Oh, sim, torva blasfémia
Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de su’harpa os hinos
Derramará contente
Aos pés de Deus, qual óleo
De recendente nardo
Leça da Palmeira 1835
In “A Harpa do Crente”
Alexandre Herculano
SE…
Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê... Se vais faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à turva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...
Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor,
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...
Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...
Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...
Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...
Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por mal sins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio a construir de novo...
Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...
Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre...
Se vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...
Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minuto se espraie em séculos fecundos...
Então, ó ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.
Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!...
Rudyard Kipling
(Poeta Inglês)
(Traduzido por Félix Bermudes)
(Gentilmente remetido pela amiga Maria Albertina Tavares)
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