FUI AGORA MEXER NAS TUAS CARTAS
Fui agora mexer nas tuas cartas.
Quem pudesse voltar a acreditar
Nessas palavras doidas e transidas
De febre no delírio da paixão
Que arrastaram num sonho as nossas vidas
Misturando-as na mesma reacção!
Aqui há um juramento além da morte.
Ali dizes que vens logo à noitinha;
E um cheiro a vinho e a fruta
– Que doidice!,Paira naquele quarto de hotel
Onde fiquei três dias e três noites
Esquecido de tudo à tua espera!
Estávamos em Março; Primavera.
Nesta um abraço ainda cinge e aperta
Meu corpo vibrante,
E ali rasga o papel o teu ciúme
Num beijo sensualíssimo de amante.
Além, mais alto, impões que te apareça
– E a noite era uma noite muito fria!
Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?
O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: «Não volto a procurar-te.»
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.
Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
– Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer
– Ficarmos alheados ou suspensos
– Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...
Não leias estes versos.
Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira.
In “Canções”
António Botto
EM LOUVOR DA ÁGUA
Louvado seja Deus por ter criado
A água, nossa irmã, com tal ternura,
Pois não há mais alegre criança
Nem mais palmeira em todo o povoado.
E que humildade a sua! Lá da altura
Daquela serra vem, passo apressado,
Sempre a descer, que é esse seu cuidado,
A repetir a esmola da frescura.
Pressurosa lá vai a bem correr,
Por aqui, por ali, dando a beber
À terra já sedenta, que a chamou...
E queda-se nas fontes a cantar,
Como dizendo, ao ver alguém a passar:
- Se tendes sede, irmão, aqui estou!
In “Cântico das Fontes” – 1934
Armando Cortes-Rodrigues
HORA
Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta – por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
E dormem mil gestos nos meus dedos.
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.
E de novo caminho para o mar.
In “Dia do Mar” – 1947
Editora Ática – Lisboa
Sofia de Mello Breyner Andresen
BLUES PARA UM FUNERAL
Parem os relógios, desliguem os telefones,
Não deixem o cão ladrar ao ver os ossos.
Mantenham os pianos fechados e batam em tambores,
Tragam o caixão, e a segui-lo o cortejo fúnebre.
Que o avião circule sobre nós em sinal de luto
Escrevendo com fumo no céu: Ele morreu,
Enfeitem com laços as pombas da cidade,
E aos polícias de trânsito ponham luvas pretas de algodão.
Ele era meu Norte, meu Sul, meu Este e Oeste,
A minha semana de trabalho, a folga de domingo,
O meu dia e noite, a minha conversa e a minha canção.
Pensei que o amor era eterno: enganei-me.
As estrelas não são precisas; apaguem-nas todas,
Embrulhem a lua e escondam o sol,
Esvaziem o oceano e varram a floresta,
Porque o que resta não vale a pena.
In “Poemas de Amor” – Versões Ana Leal
Edição Alma Azul – Janeiro.2006
W. H. Auden
(Poeta Inglês)
FEITIÇO
Foi a noite e foi o dia
e a cinza duma alegria
e a palavra começada
e pela morte cortada!
Antes de haver pensamento
foi um bater sonolento
dos olhos verdes da aragem,
e o brando afago do vento
nos cabelos da folhagem.
E foi o grito perdido
duma oração sem sentido
para um deus crucificado
no seu próprio pecado!
Foi um luar de mãos juntas
e a minha boca cheia de perguntas!
Meio, sem princípio e fim...
O meu amor foi assim.
In “Ilha Deserta” (2ª edição)
Editorial Inquérito – 1954
António de Sousa
(Cedido gentilmente pela neta do autor
a poetisa Maria João Brito de Sousa)
AS MÃOS
Olhem as nossas mãos!
Olhem as vossas mãos!
Mãos que acalentam a dor!
Mãos que dão amor!
Mãos que embalam o menino acabado de nascer!
E na ternura de um olhar confortam as mãos que sabem amar!
Mãos que tocam!
Mãos que sentem!
Mãos que não mentem!
Mãos que brilham!
Mãos que transpiram!
Por favor, não me largues a tua mão!
Por favor, dá-me a tua mão!
Que mesmo fria
Dá-me força e alegria!
Por favor, não me largues da tua mão!
Mãos que não param!
Mãos que andam de um lado para o outro
Como se não tivessem mais nada que fazer!
Mãos que arrepiam, quando o toque é repentino!
Mãos que tranquilizam quando o toque é suave e subtil!
Mãos que tocam no que demais íntimo existe!
Mão que persiste!
Mãos que lavam!
Mãos que massajam!
Mãos que fazem os olhos fecharem!
Mãos que fazem adormecer!
Mãos que deixam transparecer a dor do teu sofrer!
Ai mãos, mãos, que tanto de si deram aos outros!
Que tanto viveram!
Que tanto sofreram!
Que tanto caminharam!
Que tanto acarinharam!
Que tanto choraram!
Mãos enluvadas, mãos por enluvar!
Mãos molhadas, mãos cansadas!
Mãos enrugadas e não enrugadas!
Mãos apagadas, mãos chateadas!
Mãos aflitas!
Mão, porque gritas?
Mãos despidas!
Mãos sofridas!
Mãos largas, largas mãos!
Mãos que levam emoções!
Mãos que cuidam corações!
Mãos que te fazem pensar!
Mãos que te fazem chorar!
Estas são, apenas, as vossas mãos
As vossas simples mãos
Com muitas histórias para contar
E relembrar
Sonhar
E chorar por elas!
In “O Voluntário do H.S. João”
Jornal Informativo nº 4 de Julho de 2008
Gil Barbosa
Enfermeiro no Serviço de Neurocirurgia do Hospital de S. João
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